Uma nação de brutos

Uma nação de brutos
Douglas Garcia não é um radical, uma exceção, um mau exemplo no seio do bolsonarismo. Ao contrário, ele é bem típico dessa gente e do seu culto à grossura, à macheza, à intimidação, à incivilidade (Foto: Reprodução)

 

O Brasil já foi chamado de “o país da delicadeza perdida” e, por óbvio, isso era um lamento. Esse é o título de um documentário de 1990, dirigido por Walter Salles e Nelson Mota para a televisão francesa. É um filme sobre a trajetória de Chico Buarque de Holanda, mas, como não poderia deixar de ser tratando-se dele, é também sobre a identidade nacional, sobre o que nos constitui como nação. Por essa razão, contrasta-se o universo do “homem cordial” – de “lhaneza no trato”, hospitalidade e generosidade -, categoria usada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, pai de Chico, com um país que se define, negativamente, pela perda disto tudo.

Mais de 30 anos depois, pode-se dizer que o advento do bolsonarismo completou uma transição para uma nação quase plenamente embrutecida.

Política nunca foi uma atividade benta, o sabemos. Mas tínhamos evoluído muito das campanhas políticas baseadas em sangue, intimidação e fraude, para as campanhas em que a dimensão polêmica e competitiva, inerente à atividade política, havia sido contida em limites civilizados por normas eleitorais, por um setor inteiro do Poder Judiciário e do Ministério Público dedicado às eleições, e pela vigilância constante da opinião pública por meio da imprensa independente. São pelo menos 60 anos de esforço civilizatório ininterrupto, mesmo com o hiato da ditadura militar.

Aparentemente, regredimos nos últimos anos. Não por acaso, os anos do avanço da extrema-direita no mundo, que fez do Brasil um de seus laboratórios experimentais.

O episódio desta semana, em que o deputado bolsonarista Douglas Garcia se lança ferozmente contra a jornalista Vera Magalhães, nos bastidores de um debate na TV Cultura, é só a enésima ocorrência de uma prática que se tornou habitual nos novos tempos: o insulto e o assédio públicos de políticos a jornalistas que cobrem ou comentam a política nacional.

Notem que não se trata da intimidação e da violência sorrateiras, quando ninguém está vendo. Não, agora é na própria televisão ou em situações em que a pessoa sabe que está sendo gravada por telefones celulares, quando não, como no exemplo desta semana, é o próprio agressor gravando a agressão para exibi-la, orgulhosamente, para os seus. O que está além da “quarta parede”, como se diz na dramaturgia, é o que interessa, posto que o ator que se grava não está atuando para os que estão na cena, mas sobretudo para os que o assistem ao vivo ou a ele assistirão posteriormente.

Aquela improvisação de ringue e dança de pugilato ao redor de um profissional de segurança, quando o deputado se move em círculo para alcançar a jornalista enquanto a insulta e, ao mesmo tempo, olha-se na tela do celular para ter certeza de que está enquadrando direitinho o próprio ataque, é uma das cenas mais assombrosas e sintomáticas desse ano horrível da política. É a agressão exibicionista, orgulhosa de si e que aposta que os seus próprios espectadores o inundarão de amor digital e, como ele espera, de intenções de voto.

Foi de caso pensado, foi feito para o upload em mídias sociais e, sobretudo, foi realizado com absoluta certeza de que não haveria consequências negativas. Afinal, se o presidente da República já havia feito coisa semelhante com a mesma jornalista no Debate Presidencial da Band, por que um deputado bolsonarista não poderia fazê-lo? Se o presidente vive de insultar jornalistas, do principal âncora do Jornal Nacional às repórteres que frequentavam o cercadinho do Alvorada à cata de notícias, por que diabos o seu séquito não poderia fazer o mesmo?

Com Bolsonaro, os brutos tomaram posse. Posse na Presidência e posse do país. Não há mais semana sem notícia de bolsonaristas abatendo adversários a tiro e a população, segundo pesquisa recente do Datafolha, está como nunca apavorada com a violência política partidária nesta campanha. As pessoas estão cada vez mais armadas, mais politicamente fanatizadas, estimuladas por discursos extremistas provenientes do centro da República, representantes das Forças Armadas e das polícias rugem ameaças de uso da força dia sim, dia também – eis o pior cenário eleitoral, em termos de risco de violência, dos últimos 60 anos.

Jagunços e arruaceiros estão na ordem do dia. Douglas Garcia não é um radical, um lobo solitário, uma exceção, um caso à parte, um mau exemplo no seio do bolsonarismo. Ao contrário, ele é bem típico dessa gente e do seu culto à grossura, à macheza, à intimidação, à incivilidade. Do presidente da República a Garcia, uma horda de arruaceiros tomou de assalto a vida pública nacional.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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