Um testemunho entre metáforas e acordes

Um testemunho entre metáforas e acordes
(Foto: Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2020 é “renascimento”.


Confesso que escrevo esse testemunho sob pena de não me reconhecer nele mais. Enquanto as memórias pupilam transversalmente pelo ar, ajo como a sonhadora encapsulando neblinas que perdem o rosto durante a coleta, virando uma alma sem pele ou um resto de placenta. Se sou a neblina que se escreve, escrevo para não ter rosto – só umidade.

Meu relato é de 2020, o ano apocalíptico.

Travei guerras comigo enquanto, trancado no quarto, questionava a pressão do tempo sobre meu corpo pregado na cadeira. Isolei-me por inteiro. Queria dividir conflitos reais com outros corpos, mas só tive o impacto das horas sobre em uma abstração sem fim… confusões mentais. Tenho facilidade em expressar recuos em relação à vida e talvez fosse essa minha maior arma contra as políticas de distanciamento. Sei me retrair até virar do avesso e alcançar graus negativos de autognose vegetativa.

Quis fazer do isolamento meu laboratório em que eu experimentava os sabores mais neutros tentando extrair sabor. Fiz planners, me compactei, criei bibliografias para o amanhã, colidi com fantasmas e descobri que os poderes mais angustiantes são aqueles vinculados ao amor – aqueles que estão próximos são as figuras que mais nos afetam e dissimulam nosso estar totalmente no mundo. Às vezes a vida é frígida e os convívios são tóxicos.

Refleti sobre o que disse Sloterdijk sobre os esquemas esféricos – os nascidos precisam de bolhas para intimizar-se no mundo e estar dentro dele. Assim como Juliano Pessanha me sinto um desses que, por estar jogado no mundo, sente-se estranho, não-acolhido, desabitado, um nascido para fora da bolha. Meus mediadores falharam em algum momento e minha identidade foi abolida.

Vivi num vir a ser patológico que não sabia mais estar diante outros sujeitos. Me agarrei em suplências, as únicas formas que suportavam simbolicamente minha estadia – a música e o cinema.

Virei um mergulhador que adentrava mundos e em empossava metáforas que só os alto-falantes e as alegorias possibilitavam.

Mas meu 2020 não fala apenas sobre abismos e negatividades.

O motivo pelo qual escrevo esse testemunho é porque não apenas descobri trincheiras e galhos no meio da estrada, mas também porque a estrada me mostrou postos onde eu pude ser encontrado.

Lembro-me de como a contingência do real me empurrou para afetos que haviam desaparecido do meu cardápio. Busquei rapidamente acessar memórias de dias agitados que me lembravam que a vida podia ser suportável na companhia de seres de corpo e alma. Troquei o medo pelo desamparo só para poder me jogar na cama elástica das criaturas que me amavam.

Com elas me descobri frágil novamente, mesmo que isso me fizesse forte.

Às vezes penso no peso que cedi quando me permiti conciliar utopias revolucionárias com o pessimismo melancólico que sempre carreguei na mala. Aliás, nem a claustrofobia me impediu de radicalizar pensamentos que antes não soavam bem da boca pra fora e da boca pra dentro só implodiam meus órgãos.

Muita gente morreu. Muita gente morreu no Brasil. Mais de 180 mil. Mais de 180 mil vezes morri. Fiquei 180 mil vezes mais retraído. Não consegui medir o quanto perdi nesse tempo. Mas não posso dizer que não pude sentir o cheiro de tanta misericórdia e compaixão. Seria injusto com tantos. Eu seria falso. Só que a morte fez a festa. (mano… os caras abriram cemitérios e tinha gente sorrindo. não entendo.)

Agradeço as músicas, os gestos, os convites, as companhias, as mensagens, os sermões, os conflitos, as perguntas e tudo aquilo que fazia receber o aviso invertido de mim mesmo dizendo: “eu ainda estou vivo”.

Pois a vida é receber essas mensagens que vêm do avesso nos nossos duetos com o outro.

Mas não fiz só duetos.

Fiz trios, e quartetos, e polissemias.

O nascido pra fora do mundo, encontrou bolhas onde pudesse renascer.

Me refiro às intimidades nas quais fui gerado em abraços virtuais e virtuosos. Ali quando aquele homem sem braços foi reerguido do estar-fora.

Descobri que as melhores companhias são aquelas em que podemos perder aqui pra encontrar no mesmo lugar na hora da volta. Eu disse: me ouça. E eles disseram: chegue mais perto. Eu cheguei. Eles me olharam, chegaram mais perto ainda, e eu fechei os olhos. Fechei os olhos como quem ia perdendo a luminosidade momentaneamente e cada vez mais. Meu corpo reaquecia naquelas paredes melodramáticas e espumadas.

Eu, que já tinha perdido a vontade de falar, nem disse mais nada.

Nasci pra dentro.

Micael Correia, 22, mora em Anápolis (GO).
É estudante de Psicologia e aprendiz
de Psicanálise. É baterista e também
leitor e fã da Cult.

 

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