Um brasão, múltiplos significados: violência policial e o país que queremos construir

Um brasão, múltiplos significados: violência policial e o país que queremos construir
Manifestação no Largo do Machado, zona sul do Rio, contra as ações da PM nas favelas do Rio (Tomaz Silva/Agência Brasil)

 

Por André Carreira

Duas armas de fogo entrelaçadas.

Acima, uma coroa.

Abaixo, protegidas, duas plantas: cana de açúcar à esquerda, café à direita.

O ano era 1809.

Inspirada na Guarda Real de Polícia de Lisboa, surge, por iniciativa do então príncipe regente D. João, a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia do Rio de Janeiro.

A representação do brasão ainda hoje utilizado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro – modelo rapidamente seguido pelas demais polícias militares estaduais brasileiras – não deixa dúvidas: trata-se, desde a sua gênese, de um braço armado em defesa da propriedade e do poder instituído.

Em uma sociedade escravista com uma elite alarmada pelos desdobramentos da revolução haitiana ocorrida poucos anos antes, a criação de forças policiais tinha o tácito objetivo de defesa das camadas dirigentes e proprietárias de possíveis levantes e “insubordinações” da população preta e pobre brasileira do início dos oitocentos.

Existe hoje em dia certo senso comum, um tanto romantizado, sobre o papel das polícias no Brasil. Os epidêmicos casos de violência e letalidade policial – segundo dados do Fórum Nacional de Segurança Pública, 6.220 pessoas foram mortas por policiais militares e civis no Brasil apenas em 2018 – são invariavelmente apresentados como obra de contingentes minoritários das forças policiais. Essa visão, segundo a qual a pura e simples identificação/afastamento de algumas poucas “maçãs podres” seria capaz de devolver as polícias à sua real missão de “proteger e servir” é, no mínimo, ingênua.

Política de segurança pública no Brasil é, historicamente, a forma articulada pelo Estado para manter os pobres sob controle social e, eventualmente, fazer guerra de extermínio quando esse controle se encontra sob ameaça. As polícias militares atendem a uma lógica essencialmente beligerante. Foram criadas e se desenvolveram sob a perspectiva do “matar ou morrer”. São, nesse sentido, extremamente eficientes e bem-sucedidas. Os policiais brasileiros, também pobres e pretos em sua maioria, matam e morrem aos montes em todos os cantos do país.

A discussão sobre o que deu errado na polícia brasileira parte de um pressuposto equivocado: o problema das policias militares não é ter dado errado. É, até hoje, desde a sua remota origem há mais de dois séculos, ter dado muito certo.

Os atores representados em seu brasão podem ter mudado, mas as estruturas permanecem as mesmas. Sua finalidade ainda é, primordialmente, a de manutenção do status quo a qualquer custo.

Em uma época de recrudescimento de discursos e ações de caráter autoritário e violento, difícil imaginar uma inversão dessa perspectiva. Trata-se de um modelo que certamente não pode ser reformado. Precisa ser extinto e definitivamente refundado em outras bases.

Difícil?

Certamente.

Impossível?

Eis a escolha que se impõe.

Vamos insistir no já combalido projeto de nação que naturaliza os assassinatos de crianças como Ágatha Félix e jovens como os de Paraisópolis?

Vamos permanecer letárgicos diante de mochilas revistadas, camisas escolares ensanguentadas, mães enlutadas, famílias e comunidades destruídas?

Muito mais do que mera discussão sobre políticas de segurança pública, está em jogo o país que queremos e que lutaremos para construir.

 

André Carreira, 38, é professor de História e doutorando em História Social pela Usp

 

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