Um ano novo, de fato

Um ano novo, de fato
A foto da primeira-dama vestindo uma camiseta com a frase dita pela juíza Gabriela Hardt ao ex-presidente Lula é emblemática do novo governo (Arte Revista CULT)

 

2019 será um ano novo. Não tenho dúvida. E não me refiro apenas à óbvia troca de calendário, que, muitas vezes, é o que separa um ano do outro. Desta vez, não. O ano será fatalmente novo. Sua novidade começou a ser gestada há muito tempo. Alguns dirão que não é bem novidade, porque será um ano com cheiro de velho, arrastando raízes que vêm de regimes autoritários um tanto antigos, agarradas a autoritarismos contemporâneos e provavelmente a novidades que ainda conheceremos.

A novidade de 2019 começa, por exemplo, por sua longa gestação e pelo parto complicado. Um processo complexo, cujo ponto de partida é difícil de identificar. Foi em junho de 2013, com as jornadas que chacoalharam o país? Ou na noite de 26 de outubro de 2014, quando o PSDB, derrotado pela quarta vez por uma candidatura do PT, rejeitou o resultado das urnas e decidiu fazer sangrar o país e tudo o mais que fosse preciso para retomar o poder? Foi naquela noite fatídica, quando nascia um golpe com consequências que ninguém poderia prever à época?

Ou foi a cada nova fase da operação Lava Jato, a cada novo estardalhaço que aproximava as acusações de corrupção do presidente Lula? Ou foi no show de horrores do processo de “impeachment” contra Dilma Rousseff? Em especial naquele domingo fatídico – 17 de abril de 2016 – em que o país assistiu à votação dos deputados e suas homenagens bizarras à família, à pátria, a tudo que desrespeitam? Ou foi quando um deles, que agora é nosso presidente, dedicou seu voto a um notório torturador?

É um pouco de tudo isso, mas mais importante que identificar as origens de 2019, agora que o ano novo chegou, é enfrentar as consequências de todo esse processo e tentar evitar que sejam ainda mais graves do que parece que serão. O fato é que viveremos agora sob a dinastia de uma família de políticos que reúne tudo o que há de ruim na política brasileira, ressuscita males que imaginávamos ter ultrapassado e usa sua criatividade para inventar novas formas de destruição de seus “inimigos”. Some-se a isso um outro traço importante: não é fácil lembrar de outra família de políticos que seja especializada em gerar apenas e tão-somente outros políticos!

Sim, os Bolsonaros chegaram ao poder em bloco: ao lado do presidente, teremos seus filhos em cadeiras de senador (pelo RJ), deputado federal (por SP) e vereador (RJ). E, para além do núcleo familiar, podemos mesmo falar de um bolsonarismo no poder: o partido do presidente, PSL, saltou de um deputado (em 2014) para 52 na última eleição, formando a segunda maior bancada da Câmara federal, atrás apenas do PT, com 56 deputados (contra 69 em 2014). Teremos que lidar com isso, porque, neste momento, a influência do presidente, como de costume no cargo, é crescente. É por isso que o presidente pode se dar ao luxo de rir da facada que levou durante a campanha eleitoral e garantiu que pudesse se esconder dos debates com os demais candidatos, mesmo no segundo turno, e de entrevistas que não fossem para seus aliados.

Bolsonaro sabe bem do que ri. Ele ri da facada como quem abre um sorriso de gratidão. Nós ainda podemos ter dúvidas sobre a forma como o bolsonarismo ascendeu tão rapidamente ao poder, assim como podemos não saber bem o que esse grupo será capaz de fazer para continuar ocupando cadeiras importantes. Podemos estar confusos com tudo isso, mas os Bolsonaros, por sua vez, sabem exatamente como chegaram ao poder e dão provas diárias do que tornou viável seu projeto político.

O que dizer, por exemplo, da foto da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, um dia depois do Natal? Nem havia começado o mandato e já tínhamos a foto que me parece emblemática do novo governo: a primeira-dama vestindo uma camiseta com a frase dita pela juíza Gabriela Hardt ao ex-presidente Lula, durante interrogatório da Lava Jato em 14/11/2018: “se começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema”. Tudo naquela foto indica a disposição dos Bolsonaros para tentar se manter no poder com os mesmos expedientes que garantiram sua eleição até aqui.

Primeiro: Lula é a figura central da política brasileira há décadas e nenhum grupo se favoreceu tanto do ódio ao ex-presidente quanto os Bolsonaros. Para eles, a situação em que Lula se encontra é perfeita: vivo e importante, mas preso. Uma ameaça, mas controlada. Disputando o campo ideológico, mas sem poder disputar pessoalmente nas urnas. A frase dita pela juíza, ao intimidar Lula no início da audiência, representa justamente a necessidade de circunscrever Lula ao papel de acusado. É como se a juíza dissesse: “preciso de você aqui, mas dizendo apenas o que quero ouvir”. É como se a primeira-dama ecoasse: “precisamos de você, Lula, mas apenas como uma ameaça que justifica a existência e o sucesso político da minha família”.

Segundo: a frase vem do coração da Lava Jato para o peito da primeira-dama, sem escalas. Basta lembrar que Gabriela Hardt herdou os processos da Lava Jato após Sérgio Moro ter sido guindado a um ministério no governo de Bolsonaro. É uma forma de gratidão, sem dúvida, e de descaramento ímpar. Se a juíza Hardt agora pode produzir frases para camisetas dos Bolsonaros é porque Moro fez de tudo para tirar Lula da eleição, ajudou Bolsonaro a se eleger e, imediatamente, largou o cargo na 13ª vara da Justiça Federal de Curitiba para ocupar uma cadeira ao lado de Jair.

Terceiro: a transformação da frase dita em uma situação pretensamente séria, técnica etc., como uma audiência, em piada, em gracejo grosseiro, para tripudiar de um adversário, é uma jogada de linguagem eficiente a que os Bolsonaros estão acostumados (frases feitas, deslocadas, distorcidas para “bombar” nas redes sociais) e tudo indica que continuarão praticando mesmo durante o mandato, neste país em que o mandato se confunde tanto com a eleição… Estampada na camiseta, a frase salta do corpo da primeira-dama para a boca de seu séquito, como uma espécie de pronunciamento oficial que, a cada vez que é reproduzido, mantém viva e controlada a “ameaça Lula”.

Enfim, são muitas as significações dessa foto: a “piada” da primeira-dama aponta para as origens do governo Bolsonaro – a perseguição a Lula, solto, pela Lava Jato – e para seu futuro – a manutenção de Lula, preso, no horizonte político brasileiro. A perversidade dessa aparente piada é gigantesca, espécie de resumo do longo ciclo do golpe e de prenúncio do que enfrentaremos a partir deste primeiro de janeiro. Numa chave sincera, a frase na camiseta da primeira-dama é, por um lado, o reconhecimento de que os Bolsonaros chegaram ao poder apenas para evitar que Lula voltasse e, de outro, a admissão, de antemão, de que sabem que não poderão rivalizar com Lula e o PT em realizações que beneficiem concretamente a vida do povo, então precisam manter vivo o medo do “comunismo” de que se alimentou sua vitória.

Observando longamente a foto da primeira-dama, lembrei do belo ensaio de John Berger, “Para entender uma fotografia” (1968). Depois de explorar como o sentido de uma imagem se compõe da relação entre o que aparece e o que não aparece, o crítico inglês conclui assim o texto: “Pensamos em fotografias como se fossem obras de arte, como a evidência de uma verdade particular, como similitudes, como novos itens. Toda fotografia é de fato um meio de testar, confirmar e construir uma visão total da realidade. Daí o papel crucial na luta ideológica. Daí a necessidade de compreendermos uma arma que podemos usar e que pode ser usada contra nós”.

Não preciso me estender mais para explicar como a foto da primeira-dama funde-se à visão distorcida e limitada da realidade que os Bolsonaros querem que os brasileiros tenham. É, sim, de luta ideológica que se trata. De disputa aberta e violenta pelo poder. Por isso, o enfrentamento entre o empenho dos Bolsonaros nessa luta e a nossa resistência vai fazer de 2019 um ano novo – na política, na cultura, na imprensa, em todos os campos. Não vai ser fácil. Para mim, um ano bom será aquele em que pudermos dedicar mais tempo a dar força para as coisas de que gostamos do que para atacar o que nos desgosta. Talvez não seja 2019, mas vamos em busca dele.

TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.

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