Triste contexto nosso de cada dia

Triste contexto nosso de cada dia
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de junho de 2020 é “quarentena”.


No meu bairro, tenho visto urubus em cima dos prédios. Só que eles sempre estiveram lá. Nunca foi novidade, mas agora é meio mórbido. A morbidez vem do contexto, claro. Se não estivéssemos passando por uma pandemia de dimensões globais, eu continuaria os observando da minha janela e apenas considerando essa presença curiosa. Eles sobrevoam os edifícios há um tempo e ninguém os nota, os moradores já se acostumaram. Como a tudo na vida. Estamos habituados à presença dos urubus acima de nossas cabeças. No entanto, quando vemos a imagem de um lixão para onde os restos do que consumimos são levados algumas vezes por semana, ficamos horrorizados com essas aves sobrevoando aquele monte de lixo nojento, distante da nossa vida cotidiana civilizada. Não notamos nem as pessoas que catam o lixo ali no meio para sobreviver. Porque nos habituamos. Sabemos que essas coisas acontecem.

Mas de volta à questão dos urubus, ando incomodada com eles. Porque sempre que os observo do meu quarto lembro-me das várias pessoas que não deveriam estar morrendo. Qualquer um que pense nessa ave vai pensar em carniça, pois ela se alimenta da carcaça de animais mortos. E por me pegar pensando justamente assim, resolvi fazer uma breve pesquisa. Acabei descobrindo que ela é importante para a manutenção do meio ambiente. O urubu realiza uma espécie de limpeza, evitando que a carne de bichos mortos leve muito tempo para se decompor. E assim nós, os seres humanos que vivemos em espaços urbanos, não precisamos nos preocupar com cadáveres de animais apodrecendo pelas ruas ou estradas em plena luz do dia.

Ou seja, é apenas pelo fato de serem criaturas que se alimentam de carne putrefata que pensamos nos urubus como seres nojentos, fedidos e mórbidos. Nós os julgamos pela sua função na natureza. Eles não são mórbidos por isso. E não deveriam me fazer pensar na morte, portanto. Só que na nossa cabeça uma coisa sempre leva a outra, e observar animais que comem carniça me fez pensar em morte, o que me trouxe à mente as tantas vidas ceifadas pelo coronavírus. Por isso na vida tudo é questão de contexto. Não fosse a pandemia, olhar pela minha janela não me faria pensar em pessoas mortas sendo enterradas como se nada fossem, como as carcaças nas ruas à disposição dos urubus.

Mirella de Oliveira

 

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