Tive Covid. E não desejo a ninguém

Tive Covid. E não desejo a ninguém
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Você está em quarentena. Você está isolado. Você, de certa forma, se sente “doente”, mesmo estando em casa e com a geladeira supostamente cheia, como gostam de frisar os paladinos do “Brasil que não pode parar” (pode morrer, mas não parar).

Se sente doente de informação: dados, gráficos, estatísticas, projeções, tudo atualizado o tempo todo; não dá para ficar ligado nisso, mas também não dá para fingir que nada está acontecendo, muito menos para dizer “e daí?” – e você se sente ansioso.

Doente de ansiedade: quanto mais você se vê preso nesse presente infinito, mais especula sobre o futuro – seu, dos filhos, dos pobres, dos empregos, do país, do mundo, e se sente impotente.

Doente de impotência: saber que há pessoas para as quais a doença será muito pior, ou fatal, e sentir o tapa das próprias limitações na cara, a cada notícia.

Doente de notícias: ficar sabendo das falas e ações desastrosas de um governo desastroso e tomar, à revelia, altas doses de raiva.

Doente de raiva: os perfis e blogueiros fitness mandando “tirar a bunda do sofá”. Nada contra as lives, mas precisa dessa frase? Que sofá? Sua bunda (aliás, que bunda também, né, pois essa já ficou quadrada…) não sabe o que é sofá, só sabe o que é a cadeira na frente do computador – e você se revolta.

Doente de revolta: você conhece pessoas que trabalham com saúde, você vê a batalha travada por elas, seu grau de risco e estresse – e vê aqueles que minimizam a pandemia, chamam de “gripe”, “gripezinha” e se acham melhores, ou mais importantes, ou mais necessitados, ou mais dispostos que todo o planeta, e se exibem nas ruas de um Brasil paralelo, que existe em outra dimensão, em outro tempo.

Doente de tempo: no isolamento, as horas passam e nós as vemos passar, por mais que estejamos ocupados – e estamos o tempo todo ocupados, as demandas se multiplicam, e ficamos estressados.

Doente de estresse: filho que chora, filho que estuda, chefe que chama; roupa pra lavar, casa pra limpar, compra pra fazer, conta pra pagar – como sempre foi, só que ao mesmo tempo e no mesmo lugar, a casa, que passa a ser céu e inferno. Aí você pensa em quem não tem casa, e sente um imbecil, um frustrado.

Doente de frustração: qual a make da live? Qual o look da call? Você não sabe, não quer saber, só quer que se exploda quem sabe! Nem a um filme você conseguiu assistir! E se conseguisse pôr finalmente a bunda no sofá, como se concentrar?

Doente de desconcentração: como se concentrar para ler, escrever, trabalhar, quando se está “doente” de informação, impotência, notícias, raiva, revolta, tempo, frustração?

Mas estar “doente” disso se mostra contornável, pois há certos momentos de respiro. Afinal, você tem uma casa. Há o trabalho que, de um jeito ou de outro, vai fluindo. Há a família (o núcleo “duro”, é claro), cúmplice de tudo, em tudo. Há as aulas e os alunos, os amigos. Há as boas, embora poucas, notícias.  Há os memes, os pets, há o jazz, uma cerveja fora de hora. Há as receitas revisitadas, as descobertas, as testadas, as surpreendentes. Há a troca: de receitas e de angústias. Há a descoberta de talentos, próprios e alheios.

Agora, outra coisa é se descobrir doente “de verdade”, doente por ter contraído o vírus.

Você tem febre, tosse, dores de garganta, de cabeça e no corpo, e diz “ah, é uma gripe”. Depois você tem dor de garganta e congestão nasal, e fala “deve ser uma sinusite”. Então você perde o olfato e o paladar e, no dia seguinte, sente a primeira falta de ar. De madrugada, no hospital, depois de fazer exames, te falam que você está com o “novo coronavírus”, mas que pode fazer a recuperação em casa. “Mas, qualquer piora ou dificuldade para respirar, tem que voltar ao hospital!”.

Você começa a recuperação em casa e logo descobre que os sintomas não haviam terminado. Vêm vômitos e diarreia. Vem tontura. Vem um cansaço descomunal. Vem o sentimento de culpa: o que fiz de errado? E vem, de novo, o fantasma da falta de ar, que você não sabe se é falta de ar, se é dor no peito, se é dor nos pulmões, se é tudo isso junto mais o nervosismo de não saber se deve catar suas coisas e correr pro hospital ou procurar se acalmar; de não saber se a próxima inspiração vai ser possível, se vai conseguir chamar alguém, se vai poder chegar ao elevador, se vai conseguir chegar ao hospital, se vai haver respirador.

Você reclamava porque não conseguia ver um filme… e eis que assiste ao famoso filme que passa na cabeça, aquele da retrospectiva da sua vida: porque você pensa na morte, na “possibilidade real de morte”. Isolada dentro do isolamento, sem sair do quarto, você se sabe doente de uma doença que pode ser fatal. E vai comemorando cada melhora. Então, você já não se sente doente de informação, impotência, notícias, raiva, revolta, tempo, frustração. Você vai respirar diferente, e vai fazer o que der. Vai ajudar quem puder, como puder. Sabendo que isso só será possível porque teve a sorte – que tristemente outros não tiveram – de sair dessa.

 

Marise Hansen é doutora e pesquisadora de Literatura Brasileira, professora de Literatura Brasileira (FFLCH-USP) e poeta (autora de Porta retratos, Ateliê Editorial)

 

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