Teresinha

Teresinha
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Finalmente teve coragem de baixar o aplicativo. Precisou de um ano de terapia e dez de anos de solidão para se aventurar. Cadastrou-se, escolheu meticulosamente suas fotos, escreveu um pequeno texto sobre si que dizia um pouco, mas não muito – “nunca se mostre com vulgaridade”, dizia a mãe –, e esperou. Esperou uma semana ainda para que tivesse a segunda coragem: a de usar o aplicativo. Era exigente, escolhia criteriosamente – com que critérios? Aqueles ditados pelo bom-senso-bom-tom-bom-gosto-bom-bom-bom que se incrustavam na sua cabeça. Quando ocorreu o primeiro ‘encontro virtual’, ficou vermelha dos pés à cabeça, seu coração acelerou-se. Há tempos, tempos!, que isso não acontecia, que não era… desejada.

Esperou o cortejo, que veio logo. Um “bom dia” educado, uma conversa gentil, agradável, galanteios respeitosos. Ele parecia vir do florista, trouxe um bicho de pelúcia, trouxe um broche de ametista. Contou de suas viagens, e as vantagens que ele tinha, mostrou o relógio, chamava-a de rainha. Encontrou-a tão desarmada que tocou seu coração, mas não o negava nada, e assustada disse – não.

Outros “encontros” então se seguiram, e ela esperou uma nova conversa, um sinal, um contato, até que o segundo a chamou, mas de um jeito um tanto grosseiro. Um oi-como-vai-o-que-você-quer-aqui muito ríspido, não estava preparada para essa abordagem. Algo como uma conversa de bar, com um litro de aguardente, tão amarga de tragar. Indagou o seu passado e cheirou sua comida, vasculhou sua gaveta, a chamou de perdida.  Encontrou-a tão desarmada que arranhou seu coração, mas não lhe entregava nada, e assustada disse – não.

Ficou abalada e afastou-se por um tempo do aplicativo. Mas quando voltou, deu-se o terceiro “encontro”. “O” encontro. Assim, como quem chega do nada, ele não trouxe nada, também nada perguntou. Mal sabia como se chamava, mas entendeu o que ele queria. Deitou-se na sua cama e chamou-a de mulher. Foi chegando sorrateiro, e antes que dissesse não, se instalou feito um posseiro dentro do seu coração.

Mas quando a vida finalmente lhe iria fazer um carinho, o mundo parou. Quarentena. Recusava-se a acreditar que, depois de tanta espera, ainda mais teria que esperar. Até quando? Mais dez anos? Não sabia. Sentia-se aprisionada num sonho. Aflito. E fim.

Cristiane Quinta, 49, São Paulo, SP

 

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