Tempos de guerra: onde foi parar a ideia de paz?

Tempos de guerra: onde foi parar a ideia de paz?
(Imagem: “Cães de briga arfando”, 1818, de Edwin Henry Landseer)

 

dedicado a Faustino Teixeira

I. Sumiu

  • Ameaça de invasão da Ucrânia,
  • assassinato por espancamento do jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe,
  • sargento da marinha mata homem negro por confundi-lo com bandido,
  • medidas de facilitação do número de armas em circulação
  • reduzindo o controle e a fiscalização,
  • proliferação do discurso do ódio de milícias digitais,
  • aumento alarmante de violência contra mulheres na pandemia,
  • ataque às instituições públicas:
  • afinal, vivemos em tempos de guerra?
  • Onde foram parar aqueles vagos resquícios de calma? Sumiram?
  • Faz ainda algum sentido almejar um horizonte de paz?
  • Paz coletiva e individual, social e comunitária, reflexiva e dialógica?
  • Ou devemos mergulhar fundo nos vários conflitos
  • reais e virtuais, privados e públicos, que se exacerbam?

II. Prontidão imperialista para guerra

  • Paz não é um conceito positivo. Quem persegue uma substância concreta e discernível dela, sairá inelutavelmente frustrado. A dificuldade se inicia a partir de um valor atávico do guerreiro conquistador, herói de um povo.
  • Reis combatentes contrastam com profetas ascetas: o guerreiro material e o guerreiro espiritual disputaram entre si, durante muito tempo, prestígios rivais. A paz pode ter sido sempre o alegado fim da guerra, mas a guerra geralmente foi a verdadeira face da obsessão moral. A paz promete segurança e refúgio, a guerra instiga ânimos e furores. A paz acalenta, a guerra acicata. A guerra é brutal, a paz é ideal, modelar, abstrata.
  • Daí ser tão facilmente deturpável, especialmente pelo pacifismo burguês, que sempre pretende obliterar a luta de classes com apelos retóricos à ordem vigente.
  • Para o status quo, mantém-se não mais do que uma concorrência pacífica aparente. O sonho de paz eterna, resguardada por instituições sólidas, é uma fachada para a pronta disposição bélica fundamental do imperialismo em vigor. Como dizia Ernst Bloch, “a paz prospera em terreno capitalista como um cordeiro no matadouro”.
  • Foi somente depois de uma taxa de mortalidade inédita na história devido às duas guerras mundiais no século 20 que se introduziu um esforço internacional de trégua parcial, nos países desenvolvidos, tanto da guerra militar quanto da luta de classes. A sociedade de bem-estar foi um período único na história em que a maioria da população ganhou seguridade social e se tornou classe média.
  • As imperfeições desse modelo continuaram sendo muitas. A paz superficial se tornou pano de fundo de uma constante tensão da corrida atômica; os avanços comportamentais da primeira metade do século, em particular das feministas, retrocederam por causa da propaganda radiotelevisiva totalmente alinhada com uma enxurrada de mensagens conservadoras, associada ao festejo da tecnocracia dominante. Aliás, inclusive o governo estadunidense não conseguiu se conter em sua ânsia beligerante: enviou milhares de jovens para batalhar no Vietnã e despejar faustosamente bombas de napalm.

III. Mudança de comportamento e percepção

  • Na exasperação gritante de tantas contradições, surgiu uma resposta inédita. Jovens começaram a recusar o alistamento militar e pagaram caro por todas as consequências sacrificantes desse tipo de marginalização civil. Outros, que voltavam decepcionados com os horrores vividos no Vietnã, resolveram se aliar aos protestos, geralmente feitos por universitários, que logo se juntaram a negros. A reivindicação de desistência da guerra se vinculou a de desarmamento atômico e igualdade de direitos de negros e mulheres. Por fim, atingiu algo ainda mais abrangente: um interesse crescente pela espiritualidade indiana e indígena, pela música negra e latina, que ambicionava nada menos que a alteração da percepção e a transformação do eu.
  • Os rapazes convocados para guerra, que deveriam raspar as cabeças, deixaram o cabelo crescer, vestiram roupas coloridas e fortaleceram uma esquerda pacifista, orientalista e primitivista, o que destoou do modelo militar do PC tradicional. Hippies perturbaram os zeladores da família patriarcal e a cartilha ideológica comunista.
  • Mesmo boa parte da filosofia europeia mais transgressora não entendeu um aspecto crucial: a relação de uma espiritualidade herética e experimental com uma cultura marginal. É fácil ridicularizar os anseios espirituais de paz interior dos hippies. Nada surpreende que um extenso movimento jovem internacional caia, inclusive, na conversa de gurus oportunistas. A busca espiritual – que, a partir desse momento, foi indissociavelmente corporal, é bom não esquecer – é algo sempre frágil, tateante, idealiza absolutos iluminados e se depara com estorvos bem concretos.
  • Porém, isso não é motivo para menosprezar sua legitimidade e necessidade. Em vez de entender seus anseios e colaborar com seu ímpeto de transformação de si, a maior parte dos pensadores desencantados sumarizou tais indícios ambíguos de razões e desrazões com a rejeição geral da ilusão. Abandonou um território tão fértil desses para consentir que o mercado da autoajuda o conquistasse. Pesquisadores sérios não levaram em consideração nem tal interesse pelo Oriente e pelos índios, nem sua incidência numa cultura de massa que flertava com a vanguarda artística. A única produção artística digna de interesse preponderante era, basicamente, o legado modernista que ainda não havia perfurado os muros da indústria cultural. Houve, por parte da intelectualidade altiva, um desprezo generalizante por tudo o que ocorria nas novas mídias, sem se dar o trabalho de separar o joio do trigo. Depreciou-se todo um trabalho micropolítico de aspiração pela paz no plano cultural e espiritualizante.
  • No chamado terceiro mundo, a guerra fria foi cálida. A alegada fragilidade democrática americana ante os comunistas justificou a instauração de ditaduras massacrantes que moldaram um violento processo de modernização feito quase que somente para a elite. O movimento contracultural no Brasil, especialmente ligado à mistura de rock e MPB na música e na chamada literatura marginal, abriu espaço para experimentações artísticas e comportamentais que subvertiam a opressão ditatorial com humor, ironia, deboche, desbunde e sociedades alternativas. Nacionalistas rigorosos desaprovavam; censores condenavam. Em meio à polarização dos legisladores de plantão, era difícil encontrar um jardim qualquer para respirar, mas ele foi descoberto e cultivado.

IV. Cultura da violência

  • A partir da crise mundial dos anos 1970 e a desregulamentação dos anos 1980, a desigualdade voltou a crescer e jovens punks incorporaram a agressividade dos novos tempos. A boemia contracultural, que havia alcançado um considerável espaço na cultura de massa, foi sendo expulsada por empresas cada vez mais austeras que exigiam lucro a todo custo, eliminando qualquer margem de experimentação e diversificação. A rara conjuntura de abertura de liberdade de expressão, liberação sexual, mistura étnica, espiritualidade difusa e protesto político foi sufocada pelo desemprego, empobrecimento, tirania mercadológica e restrição expressiva, o que resultou na hegemonia de uma verdadeira cultura da violência na música, no cinema e nos videogames.
  • Se, nos anos 1960 e 1970, a contracultura perdeu na política partidária e demorou para deter a guerra do Vietnã, ela venceu no comportamento e na expressão simbólica, mudando decisivamente o modo de vida pós-moderno. Contudo, dos anos 1980 em diante, a reação foi avassaladora: o campo midiático enxertou cada vez mais um imaginário tomado por fetiche de armas, tiroteios, lutas corporais, sedução da máfia, heroificação da polícia e fascínio por assassinos em série, bem como um embrutecimento da sexualidade e um encolhimento da imaginação utópica. A guerra às drogas serviu para a criminalização e encarceramento dos negros. No Brasil, passou-se a viver uma verdadeira guerra civil ininterrupta, que, embora mate em torno de 60.000 vítimas por ano, sequer é nomeada como tal.
  • Com os serviços de propaganda mobilizados pelas plataformas digitais, atingimos um novo estágio de agravamento desse processo. Assim como a televisão e as gravadoras eliminaram espaço de audiência para experimentações artísticas e diversificação cultural, estupidificando o máximo possível o conteúdo permitido, as redes sociais descobriram que a melhor forma de manter o usuário ativo, alimentando a rede com dados pessoais, é instilando nele o ódio, de modo a que seu engajamento se intensifique. Implantaram-se polêmicas artificiais que dividem o público em polarizações estanques, o que garante o sequestro da energia política, agora aprisionada pela promoção de bolhas antagônicas, hermeticamente encerradas em si mesmas. A chamada guerra cultural é o império do ódio sempre mobilizado para a produção de dados pessoais.
  • Agora foi atingido o mais recente estágio de hostilidade de todos contra todos. O imperativo neoliberal de competição incessante, que só multiplica a maioria esmagadora de fracassados, torna a autoculpabilização regra e o sofrimento psíquico onipresente. Ele nunca quer que o sujeito se acalme: a vida deve ser uma autopromoção individualista incansável.

V. Alguma brecha à vista?

  • Diante desse estado de inflexibilidade e estreiteza, cabe retornar à pergunta inicial: ainda há alguma chance de resgate do horizonte de paz perdido?
  • Até que ponto a mais genuína energia de revolta está sendo capturada num joguete programado, controlado e administrado com fins de acirramento de conflitos, cujo resultado é, ao que tudo indica, a aflição e a agressão mútua, o cansaço e o medo, a mobilização e a frustração?
  • É possível recuperar campos de ar livre para respirar?
  • Ainda há ensejo de diálogo, escuta, reflexão, relaxamento, distensão e leveza?
  • Não valeria a pena conceber um pacifismo renovado, agregador, em prol da saúde comum, que não soe piegas?
  • Como congregar a energia revoltosa em torno de ações afirmativas, na contramão de um sistema divisionista?

 

Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.


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