Tempo do fogo

Tempo do fogo
(Foto: Tim Bish/Unsplash)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2020 é “tempo”


Demorei longos anos para entender a lógica dos horários no relógio. Não me refiro a saber olhar as horas e entender o emaranhado de ponteiros – que ainda hoje é um desafio. Falo da percepção da passagem do tempo.

Mesmo a posição solar, sono, vitalidade e humor não diziam muito mais sobre o imediato. Para mim, existia o agora, o antes e o depois. O amanhã, o hoje e o “antes de ontem”.

Cresci em meio ao movimento pendular entre a capital e o interior. Entre a família nuclear e a grande família italianizada reunida às voltas da cozinha. Ao redor do fogão à lenha no inverno e em roda no gramado pelos meses de verão.

Os horários e cálculo do tempo eram sempre ministrados pelas refeições. Os tempos de cozimento e de preparo. O trabalho da quantidade de porções. A engenharia de organização da mesa nos intervalos entre café-almoço-janta. Toalhas, cadeiras, pratos, louça… pão, cuca, queijo… uma verdadeira força tarefa para alimentar as 50 barrigas que passavam o dia a devorar minutos e histórias repetidas.

Os anos transcorreram e fui sendo aprisionado ao tempo ditado no relógio. Tarefas, compromissos, trabalho, preguiça… seria tempo demais na estrada… enfim, desculpas que o apetrecho dos ponteiros nos faz acreditar.

As refeições mantiveram-se como uma importante referência na rotina, sempre aguardadas com certa expectativa. Talvez o ponto de contato com aquela infância falsamente nostálgica que sustentamos na adultez. Mas o tempo já não era medido e sentido pelos cheiros de brodo ou farinha crua na bancada. Na cidade, os aromas se confundem à fuligem e à pressa. A refeição vira uma obrigação ou necessidade antes de uma pausa para a auto-percepção.

A pandemia me obrigou a repensar o tempo, a pressa, a rotina, os horários… a vida. Nunca a temática, de maneira quase conflitiva, se viu tão em meio à vida e à morte. Não ignoro ou lavo as mãos do que se passa no mundo e com nossos corpos – bem pelo contrário. Mas essa pausa das ruas pode reavivar esse tempo esquecido e guardado com tanto carinho em minha fundação subjetiva.

As reuniões, encontros, compromissos e tarefas do cotidiano voltaram a ser balizadas pelos tempos da cozinha. Durante ou entre cada um, com um fone sem fio ou ouvindo alguma playlist, as mãos dançando no fogão balizam a organização de cada tempo de meus dias isolado. Nesses tempos de solidão, quase sinto a companhia daqueles 50 familiares em aglomeração na mesa da minha sala aguardando ansiosamente o horário da refeição. Sem qualquer pista de que horas são.

Um brinde, o acompanhante de cada agradecida refeição.

Saúde!

 

João Luís Miola, 24, trabalha no acolhimento em saúde mental,
atendimento clínico e oficinas terapêuticas em Porto Alegre,
RS. É também músico e padeiro amador

 

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