Tecitura de Carapuças

Tecitura de Carapuças

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”


Sobre genuína bondade?!…
Sei:…
algumas generosices de fachada
e compaixão tartufa.
Já iniquidade, domino:
cá dentro, no invisível, intolero,
não vou com as caras
(somente  a coroa  venero:
a majestade ignara!…).

Possuo a indispensável petulância dos que mostram saber,
e a mais escorregadia artimanha de escamoteamento
(minha ignorância está a 7000 léguas do alheio glaucoma)
– antiquíssimo artifício a me garantir privilégios é a soma
do puxa-saquismo de alto nível com o indiscriminado pisoteamento.

Sou o que busca – e encontra sempre! – o pelo do ovo, o chifre do cavalo,
o teu pior defeito (que jamais te será dito na lata):

invariavelmente por trás (sine qua non da covardia) minha língua exata
se afia, dá nos dentes à mesa dos poderosos, com justo regalo…
Calunio, juro, perjuro e denuncio, depois esqueço tudo…
Não me contenta denegrir a imagem: apodreço o conteúdo!

Trago o cão raivoso no sorriso:
– sou o III Ricardo, Macbeth e Iago,
com todos os ingredientes e adaptadas brasileirices de praxe.

Sou o embuste, a farsa, o engano,
o insano, o dano da danação;
o engodo, o lodo, e o lado afiado
do cutelo em tua carne e ossos!
Eu me aposso e bato o martelo!
Eu sou o impune, o que desune,
o desnaturado  pomo e flor da discórdia!
A mixórdia, o frege, o santo herege
que nada protege ou afaga sem a adaga;
sou a cruz e a espada, o impasse,
a bifurcação multiplicada.

Acho imprópria a pena de morte: – eu sou a própria!
Pior: eu sou a pena de vida!
Pior que eu, sou quando me enfrento: não me deixo saída!
Sempre me venço – fomento o vulcão – antes que outro bombardeiro lance mão!
Desavisado, já me experimentaste de perto:
fizeste muito mais que uma quarentena a meu lado no deserto
(uma vida, quase inteira, na soleira do diário day after)
– o inferno de Dante, Graciliano e Sartre!

A raça pura, a brancura veneradora da escravatura – IV Reich e Ku-Kux-Klan –
eu, o macho, acho, esculacho, rebaixo
e despacho pro além: não deixo para amanhã.
Escalpelo xamãs e tupis. Torturo, esquartejo, taco fogo
e espalho no brejo.
Eu sou a homofobia de palavra e paradigma – o  requinte rosicler:
– “bicha burra nasce mulher!”
Armo tua cama, te puxo o tapete (vermelho);
faço festa, meto o bedelho, espio pela fresta, mordo o teu fígado e o juízo,
e a primeira pedra atiro sem aviso;
Eu sou o não, meu irmão – o NÃO!;
a inveja, o ciúme, o que aleija o caráter
até que se esfume.
Eu, o Joaquim Silvério das confidências – (cuidado: as aparências!…)
proclamo a dependência.
Eu crio a mentira – (inumeráveis news) e tu votas em todas
com boa dose de libido reprimida
e ira.
Bula? Vide a mídia.

Aparentemente nada especial, (estou aí… pelas ruas… comum feito milhões…)
amado, odiado, bem e mal visto no mundo,
por espelho e reverso.
Não me confundam comigo: tenho duas caras concomitantes (por segundo).

Este poema…?… Disfarce da persona.
No final, na penúltima mandriona estrofe,
desmascarado, recoloco o fingimento em dia
subterfúgio de vacina vencida… (e, em off)
outra deslavada demagogia!
Muito íntimo de Kubrick, retorno em concreta magia:
trago a velha odisseia do tempo a 2021,
com alaranjada mecânica
atualizada.

Já sentiste angústia, tu que ora me lês?
(gargalhada teatral, em si
bemol.)

A gente se vê…
A gente se vê por aí!…

 

Ademir Martins é ator, diretor e dramaturgo. Trabalha há mais de
40 anos na área, com montagens, atuações e cursos, e mora em
Macaé, Rio de Janeiro.

 

 

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