Sujeito racial, governo dos corpos e branquitude

Sujeito racial, governo dos corpos e branquitude
(Arte Andreia Freire / Foto Yves Krier)

 

Achille Mbembe possui relevante produção intelectual cuja potência se encontra na qualidade de apontar para uma estrutura fundamental do capitalismo global: o racismo. No começo do século 21, o filósofo africano publicou seu artigo Necropolítica, anunciando um projeto de análise que viria a ser detalhado nas obras Crítica da razão negra e Políticas da inimizade.

Poderíamos dizer que há, no Brasil, circunstâncias favoráveis à recepção e à agenda intelectual e política dessa filosofia africana. As questões raciais, interseccionadas com os problemas de gênero e as discussões em torno dos modos da urbanidade, constituem as principais lutas políticas contemporâneas. Da mesma forma, mobilizam ampla rede de saberes e de produção do conhecimento, envolvendo as universidades, as instituições de pesquisa, mas também as ruas, os espaços com alguma autonomia discursiva e de organização, os coletivos negros e feministas, os quilombos.

Os livros de Achille Mbembe versam sobre uma temática fundamental para a compreensão das relações de poder no território brasileiro. Sua leitura, contextualizando os conceitos e instrumentos analíticos à topologia local, configura-se como fundamental para o entendimento dos mecanismos de controle político e, igualmente, das lutas cotidianas.

O conceito de necropolítica lança um olhar mais aguçado para a racialização das relações e práticas sociais, que implicariam a produção de inimigos. Estes teriam características fabricadas em regimes de subjetivação montados desde o processo de colonização e camuflados sob as cenas da democracia liberal. Aparentemente antagônicos, democracia e produções da inimizade compõem o paradoxo constituinte e potencializador da política nos Estados de Direito.

A democracia consensual obtida entre os séculos 19 e 20, no continente europeu, não teria sido possível sem a violência do colonialismo e da escravidão. Humanismo, paz, direitos humanos, sujeito universal, cidadania e a própria democracia se realizam e se justificam mediante a existência de uma outra razão (irracional e animalesca), dos sujeitos patológicos da raça inferior. Através de certa genealogia da violência no capitalismo, Mbembe recorre aos conceitos de biopolítica, estado de exceção, poder soberano e os relaciona com os processos de colonização e descolonização.

Recorrendo criticamente ao exposto por Michel Foucault no seminário “Em defesa da sociedade” (1975-1976), Achille Mbembe mobiliza a noção de soberania em sua relação com a guerra e com o biopoder. Segundo Foucault, e de modo distinto da concepção liberal dos regimes democráticos, não existe politicamente o evento da cessão de “direitos naturais” por parte dos indivíduos ao poder soberano. Ao contrário, os acontecimentos nos contam sobre o acúmulo de conflitos, lutas e guerras mesclados com momentos de encenação da calmaria, de rearranjo de forças, durante os quais os deslocamentos e as disposições alocaram os indivíduos em novas relações de dominação e resistência.

A soberania foi considerada um dos dispositivos de acúmulo de forças cujos efeitos de poder se prestam ao governo e ao controle dos indivíduos e das populações. Os direitos, dentro dessa ordem, delimitavam o modo como o soberano exerceria seu poder e conservaria sua legitimidade. Isso implicaria dizer que o principal papel deste edifício jurídico-político foi o de dissolver nos direitos os mecanismos de dominação, tornando-os simulacros legítimos dos processos de controle aos quais os súditos deveriam se submeter.

Diante do cenário da modernidade temos um vertiginoso conjunto do qual emerge um pensamento racial. Nessa experiência fundamental de nosso tempo, “o negro e a raça têm sido sinônimos, no imaginário da sociedade europeia; (…) constituíram ambos o subsolo (inconfesso e muitas vezes negado), ou melhor, o complexo nuclear a partir do qual se difundiu o projeto moderno de conhecimento – mas também de governo”.

A máquina de guerra do Estado capitalista e liberal somente se realiza com a fabricação do “negro” e da escravidão em massa. Entre os processos de colonização, dos séculos 15 ao 19, e as formas contemporâneas do capitalismo global, há a continuidade do dispositivo racial funcionando como justificativa do autoritarismo e da liberação da violência do Estado.

Para Mbembe, o negro é uma “ficção útil, uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica”. Em seu surgimento, a fabulação da categoria negro e da noção de raça se apresentou como instrumento de cesura social, demarcando de modo insuperável o “outro” cuja existência implicaria risco para a qualificação da vida dos brancos. Os negros funcionariam como o resto, figura do “dessemelhante, da diferença e do poder puro do negativo”, a objetificação do ser.

A produção do outro ocorre sob o signo de uma alteridade absoluta ameaçando, com sua presença, a segurança e o “fazer viver” da cidadania. Achille Mbembe observa que, sob o medo e o risco de se perder a ordem constituída, o fenômeno da inimizade funciona como um regulador das práticas sociais. O racismo contemporâneo se efetiva pela ideologia da supremacia do sujeito universal, retomando os fundamentos da lógica colonizadora e menorizando a vida cuja existência seria, além de um fardo, um perigo para a normalidade.

Somado ao cenário contemporâneo do estado de exceção permanente, conforme Mbembe resgata da filosofia de Giorgio Agamben, a violência do Estado é solta nos territórios precarizados, os chamados “campos”. O acúmulo da ausência de políticas públicas e serviços em determinadas localidades produz, enquanto projeto político, os espaços vazios de direitos e plenos de riscos à ordem. Na matriz da guerra ao inimigo e das políticas de morte, a cidade “é um mundo cortado em dois”, como dizia Frantz Fanon, cujas fronteiras, ainda que “sem intervalos”, são mantidas pela militarização crescente da vida e do cotidiano.

A “prática de zoneamento” fabrica espaços povoados por hordas perigosas e caracterizadas pelo perigo que representam para a democracia liberal. A insegurança e o medo gerados pelos inimigos autorizam o Estado de Direito a agir em condições de exceção, promovendo permanentemente intervenções nos territórios e nos corpos colonizados.

São condições observadas no Brasil, onde a população negra tem mais de 40 mil jovens vítimas de homicídio por ano, com outros milhares sob a produção do encarceramento em massa, sem o acesso a serviços dignos de saúde e educação, com salários inferiores em relação à população não negra. As favelas e periferias pobres das grandes cidades, territórios habitados majoritariamente por negros, são historicamente precarizados e se tornam alvos dos “mecanismos técnicos para conduzir as pessoas à morte”. Os “campos”, ou poderíamos dizer as favelas, não seriam o resultado do mau funcionamento do Estado, mas antes um projeto necropolítico.

Enquanto objeto, o ser negro é a economia ficcional de ausência e invisibilização. O racismo serve ao papel de mercadoria, mas ao mesmo tempo, sob um discurso liberal herdeiro do Iluminismo, transmuta-se em tribunais e instituições de tratamento das patologias sociais coisificadas na miséria e no sofrimento social. Os elogios à igualdade e à fraternidade, conduzidos pela universalização da vida contida em certos discursos dos direitos humanos, somente acentuaram o profundo abismo entre os “negros” ou não brancos, portadores das patologias sociais, e a parte da humanidade proprietária da plena cidadania.

No livro Crítica da razão negra, Mbembe propõe a abordagem do significante negro a partir da crítica radical da ideia de raça. Seria o caso de passar, primeiramente, pela afirmação da diferença e da identidade, para, em seguida, criar uma comunidade humana. Isso se daria por um lado pelo abandono do papel de vítima por parte do negro e, por outro, pela assunção do lugar colonizador exercido, de modo consciente ou não, pelos brancos.

Ser branco é compreendido como a condição em que sujeitos com certa aparência, de pele clara, cabelos lisos e função social hierárquica foram sistematicamente privilegiados material e subjetivamente. O que ocorreu a partir do colonialismo, mas se perpetua com atualizações e sofisticações fabricadas na contemporaneidade.

Revisitar o racismo estrutural e lutar pela produção de uma outra ética e de uma justiça não racializada demanda que nas ruas, nas casas, nas universidades, nos partidos e instituições de governo da vida haja uma abertura de experimentações críticas da branquitude. Essa abertura se constitui sob a identidade racial normal, a que seria o padrão e diante da qual os outros grupos apareceriam como o desvio e o desqualificado.

Seria algo como se olhássemos no espelho e, por meio de um passo ético, político e filosófico, víssemos uma pele negra sob a máscara branca. No dia em que isso for uma performance coletiva dos brancos, talvez possamos abandonar as políticas identitárias e passar a experimentar uma vida comum, mais justa e democrática.

Diante da rica construção filosófica e histórica de Achille Mbembe, sua recepção em território brasileiro se reveste de importância também política e afetiva. Não se trata de assimilar de forma estrutural o seu texto e reproduzi-lo mecanicamente no formato discursivo e analítico. Assim como o esforço do filósofo africano é direcionado a compreender sua perspectiva geopolítica, a leitura de sua obra nos exige a contextualização à realidade brasileira. Trata-se de ler Achille Mbembe sob o compromisso de trazer à tona as tecnologias de controle social fabricadas pelo racismo brasileiro dissimulado, bem como os saberes locais e específicos das resistências.

Edson Teles é doutor em Filosofia pela USP, professor do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp e membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos da Ditadura


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