Nem todos os caminhos levam a Stonewall, em Nova York

Nem todos os caminhos levam a Stonewall, em Nova York
Manifestantes se reúnem no Central Park, de Nova York, na Primeira Marcha do Orgulho Gay (Foto: Diana Davies/New York Public Library)

 

“Tudo começou em Nova York, no Stonewall Inn, em 28 de junho de 1969.” Essa é a narrativa consagrada, repetida constantemente por ativistas nos Estados Unidos, na Europa, na América Latina, no Caribe e em outros países, nas vésperas das paradas anuais do orgulho LGBT+, que se tornaram o símbolo principal dos movimentos por diversidade sexual e de gênero em todo o mundo.

Mas essa história tradicional de uma única origem obscurece uma realidade muito mais complexa da luta pela igualdade de direitos empreendida pelas pessoas LGBT+ na última metade do século 20 e nas duas primeiras décadas do 21.

De acordo com a versão “oficial” sobre esse passado, a liberação sexual e o movimento pela igualdade entre pessoas do mesmo sexo se difundiram lenta e progressivamente do Greenwich Village, bairro em que se encontra o bar Stonewall Inn, para o resto do país e, depois, para o mundo. No entanto, o uso de Nova York em 1969 como um marco cronológico da fundação do movimento lésbico e gay na América Latina desconsidera outros desenvolvimentos nacionais importantes.

Dois anos antes de Stonewall, por exemplo, o grupo social Nuestro Mundo, fundado em Buenos Aires em 1967, adotou uma atuação fortemente politizada durante o fermento revolucionário de 1968 e ajudou a fundar a Frente de Libertação Homossexual (FLH), em 1971. Os ativistas gays argentinos organizados na FLH foram mais influenciados pelas construções teóricas europeias, o nacionalismo peronista e a retórica revolucionária que emanava de Cuba do que pelas ideias originárias dos Estados Unidos.

De fato, a Revolução Cubana desencadeara um entusiasmo que conduziu uma geração de latino-americanos para o marxismo e para a política revolucionária, pois a transformação radical da sociedade parecia possível; e a revolução, iminente. Bastante representativo desse espírito de época foi o fato de a FLH inicialmente buscar alianças com o movimento feminista emergente e setores de esquerda para elaborar uma ideologia que combinava a libertação sexual e nacional.

Como seria padrão em toda a América Latina, esses gays e lésbicas militantes recém-convertidos ao nacionalismo radical e engajados em organizações revolucionárias foram, em grande parte, rejeitados, levando-os a uma prática política mais independente e autônoma. A homofobia que alguns desses ativistas sofreram nos anos 1960 e início da década de 1970 dentro de grupos revolucionários os deixou amargurados em relação aos marxistas e à esquerda, fazendo com que insistissem que alianças estratégicas ou táticas com esquerdistas eram perigosas, se não impossíveis. Outros que abandonaram uma militância mais tradicional de esquerda e, com base em suas experiências na clandestinidade, tornaram-se fundadores de novos grupos politizados de gays e lésbicas. Muitas dessas pessoas também buscaram pontos de convergência com os setores da esquerda latino-americana que mantiveram atitudes menos hostis em relação à homossexualidade.

As mobilizações estudantis mexicanas de 1968, assim como as revoltas políticas na Argentina durante o mesmo período, também engendraram uma primeira geração de ativistas gays e lésbicas. Em 1971, uma organização gay de curta duração, a Frente de Liberação Homossexual, foi fundada no México. Um ano depois, a diretora de teatro Nancy Cárdenas organizou o Coletivo de Liberação Homossexual, marcando o estabelecimento definitivo de um movimento naquele país. Em 1974, lésbicas e gays porto-riquenhos organizaram a Comunidade do Orgulho Gay e começaram a publicar o jornal Pa’Fuera na ilha.

Contudo, qualquer tipo de organização política na América Latina era difícil nos anos 1960 e 1970. Os regimes militares que tomaram o poder em todo o continente – Brasil (1964), Argentina (1966), Bolívia (1971), Uruguai (1973), Chile (1973), Argentina (1976) – consolidaram seus governos com o apoio dos Estados Unidos, que temiam outra revolução cubana no continente. Um dos efeitos colaterais desses regimes autoritários foi anular todas as possibilidades de se construir movimentos politizados em torno das agendas de liberação sexual e tolerância social para gays e lésbicas.

No Brasil

Enquanto movimentos ainda incipientes lutavam para sobreviver em Buenos Aires, na Cidade do México e em San Juan, gays e lésbicas brasileiros viviam os anos mais repressivos da ditadura militar. Em dezembro de 1968, os generais fecharam o Congresso, suspenderam os direitos constitucionalmente garantidos, aumentaram a censura à imprensa e intensificaram a prisão e a tortura daqueles que se opunham ao regime militar. Embora homens e mulheres homossexuais não tenham sido alvos específicos da política de extermínio e desaparecimento da ditadura, o aumento do número de policiais militares nas ruas, o fim do Estado de direito e a repressão das expressões artísticas e literárias criaram um clima que desencorajou o surgimento de um movimento de lésbicas, gays e travestis no início dos anos 1970. A ditadura brasileira, semelhante a outros regimes militares e autoritários, silenciou um movimento que provavelmente teria eclodido na cena pública se as medidas repressivas não estivessem em vigor.

Paralelamente a esse turbilhão da revolução e da contrarrevolução, outra mudança estava ocorrendo em grandes centros urbanos por toda a América Latina entre os anos 1950 e 1970. Dada a radicalização política da época, muitos gays e lésbicas evitavam a política e se voltavam para dentro, buscando espaços sociais em que pudessem interagir mais facilmente entre iguais. No Brasil, por exemplo, bares para gays e lésbicas e outros espaços semipúblicos para sociabilidade se expandiram nas grandes cidades. Mulheres que compartilhavam desejos homossexuais e românticos semelhantes formavam discretamente redes sociais e ofereciam apoio mútuo dentro de uma sociedade hostil. Homens que desejavam homens também se apropriaram de novos espaços públicos, criaram famílias alternativas e formaram vidas repletas de paixão e alegria para enfrentar a solidão e o desespero.

Em meados da década de 1970 no Brasil, a combinação de dificuldades econômicas e a crescente oposição ao governo por parte de estudantes, figuras políticas e um movimento sindical combativo mudou o equilíbrio de poder no país. Diante da possibilidade de uma explosão social, os generais do governo orquestraram uma liberalização política controlada que, por sua vez, foi acelerada por sucessivas ondas de greve em São Paulo, o centro econômico do país. Nesse efervescente período de aberturas políticas graduais, surgiram novos movimentos sociais, com destaque para (i) o Movimento Negro Unificado, que questionava a representação tradicional do Brasil como democracia racial; (ii) um movimento feminista, que confrontou o sexismo tanto da esquerda ortodoxa quanto da sociedade brasileira em geral; e (iii) um movimento pelos direitos de lésbicas e gays.

Na formação do movimento LGBT+ brasileiro, enquanto muitos olhavam para o norte em busca de referências sobre como formar um grupo, outros olhavam para o sul, mais especificamente para a Argentina. De fato, o nome Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, foi uma homenagem à publicação da FLH na Argentina, o jornal chamado Somos.

Nem todos os caminhos, assim, levam à cidade de Nova York.

James N. Green é doutor em História da América Latina pela Ucla e professor da Universidade de Brown, autor de Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel (Record)


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