A sós com o vampiro

A sós com o vampiro
Foto: Hannah Troupe/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


Em um dia chuvoso tipicamente curitibano, fui tomada por uma sensação de angústia enquanto caminhava e busquei amparo em uma poltrona de biblioteca, não sei bem o porquê. Mal havia relaxado o corpo naquele refúgio de couro quando olhei para o lado e dei de cara com os livros de Dalton Trevisan na estante.

Senti a reciprocidade do olhar. Eu havia desenvolvido talento para a invisibilidade nos últimos tempos, mas pelo Dalton ninguém consegue passar ileso, esse é o talento dele. Transeuntes, perambulantes, joões, marias e bentinhos da úmida Curitiba nunca escapam do seu olhar atento.

Eu sorri para O Vampiro de Curitiba aparentemente inofensivo na prateleira. Famoso por ser recluso, ali curiosamente destacou-se com suas lombadas gastas e apareceu sorrateiro, encurralando meu corpo naquela poltrona fria.

A obra de Dalton Trevisan foi objeto de minha pesquisa na Especialização e no Mestrado em Letras na cidade de Londrina, onde morei por tantos anos. Eu não parti com ele para o Doutorado. Abandonei o Vampiro após fechá-lo com capa dura entregue à secretaria da universidade. Tenho certeza de que foi ele, por pirraça, que me levou à repentina decisão de me mudar para Curitiba um tempo depois. Fui arrastada da maneira mais brusca para dentro de seus contos. Ele foi meticuloso e soube o momento exato de agir. Preciso, como de costume.

Ali, na biblioteca, não era a primeira vez que ele me observava pelo buraco da fechadura.

O dia em que me senti fundindo ao mofo do teto do quarto, ele decidiu que queria ver mais.

Ele me viu em uma noite chuvosa, atravessando quarteirões molhados e vestindo um abrigo velho à procura de um muquifo qualquer que vendesse pão. Ouvi palavras desconexas de mendigos, passei por bares com luzes coloridas duvidosas e por uma discussão de traficantes sob ripas de madeira de uma construção inacabada. Voltei com frio, guarda-chuva pingando e manchando o piso de taco… e sem pão. O Vampiro certamente anotou em algum lugar.

Cada bar, restaurante e cafeteria que entrei para beber e comer sozinha, ele viu.

Todos os copos de cerveja que eu segurei e beberiquei aos poucos só para tornar menos desconfortável o fato de estar deslocada em uma festa e encostada em uma parede suja enquanto ouvia uma banda underground, ele viu também.

Presenciou a minha insônia às três da manhã e o meu medo (algumas vezes pelos gritos na rua, outras, pelo silêncio).

Assistiu ao meu sono leve e encolhido no canto de uma enorme cama de casal.

Leu cada bilhete que eu mesma deixei para mim na geladeira.

Notou minha TV ligada só por barulho à toa. Também as conversas minhas comigo em voz alta e com as violetas na janela. O choro livre no banho. A descoberta do horário que o sol entrava no quarto e aquecia o meu rosto e a minha mão com o cigarro.

Eu sorri para Dalton daquela poltrona, pensando naquela ironia do destino: depois de tanto tempo fugindo dele, um reencontro bem ali, na solidão, onde tudo começou.

Laura Marafante, 31, mora em Curitiba. É atriz e teima em ser escritora.

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