Sonhe enquanto eles dormem

Sonhe enquanto eles dormem
(Ilustração: Marcia Tiburi/Revista Cult)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de fevereiro de 2021 é “sonho”.


O sonho é a virtualidade em seu grau zero. E, o paradigma do mundo é a virtualidade. Tudo é virtual, então tudo é possível. Permanecemos profundamente perturbados pela sombra das infinitas possibilidades do que podemos nos tornar. Podemos ser tantas coisas, e acabamos engolidos pela gravidade desse virtual. O sonho não é mais a construção simbólica do futuro. Hoje, o sonho é o ritual de invocação do demônio da produtividade.

Somos uma máquina de produção de futuros, todo o tempo. Por isso, existe constantemente um trabalho de luto sobre o excedente dessa produção. Andamos entre as ruínas dos futuros que morreram prematuros, e o réquiem da decepção de não ser a melhor versão de nós mesmos. O luto é sempre inacabado (alguns dizem melancolia), não temos tempo para pensar sobre o que não foi. Depois disso, devemos desejar outra coisa. O grande problema dessa máquina de produção é sua demanda. O único consumidor dessa prodigiosa indústria é o próprio eu, portanto, não existe escoamento.

Um bom assassino não deixa vestígios, por isso, o principal suspeito da morte do eu futuro é sempre o planejamento. As metas e planos de ação cumpriram o papel de substituir os desígnios da providência. Os sonhos da humanidade não são mais os propósitos de Deus, e agora não podemos mais deixar a cargo de sua onisciência. A culpa das frustrações com o futuro é irrevogavelmente humana.

Nunca conseguiremos nos livrar dessa condição de sonhar. A impossibilidade do fim do sonho, na verdade, é justamente o que o torna o mais perverso dos mestres. Ele é interminável, e extremamente eficiente na proliferação indiscriminada de imagens do devir, infinito buraco negro de esperanças. Parece que até androides sonham no final das contas, Philip Dick disse que sonham com ovelhas elétricas. Eu sempre achei que um dia iríamos parar de dormir, ou tornar o sono mais produtivo. Acho que nem assim nos libertaremos de sonhar.

O acaso e a ilusão não consumaram a morte de Deus. Quando somos donos do nosso próprio destino, o peso de viver é exatamente proporcional ao número de caminhos a trilhar. O espaço deixado pelo livre-arbítrio foi preenchido pelo planejamento produtivo. Ou seja, todo nosso imaginário de futuro foi capturado por um modelo de gestão, autogestão. Entretanto, quando o rendimento não é como o planejado, não podemos demitir o responsável. Inicia-se o ciclo recorrente de autoimolação e sofrimento.

Sobrevivemos à explosão de todos os sonhos da modernidade. Somos a utopia pervertida do século das luzes, o pesadelo do iluminismo. Evidentemente, ninguém dorme bem de luzes acesas. A modernidade sonhou com um mundo livre de si mesmo, essa foi a liberdade que escolhemos. Temos a total liberdade de ser ocidental, liberados para desejar ser o que quisermos, desde que possamos conviver com isso. Ascensão das redes pós-sociais, aquecimento global, e depressão.

Vontade e desejo ainda são o que movimenta as engrenagens da economia das paixões, mas temos que enfrentar a morte da articulação do secreto, a verdade oculta sobre o mundo e sobre as coisas, a morte do lugar onde o inconsciente fala e é ouvido. Não nos sobrou nem a erotização de sonhar com um passado recalcado, onde tínhamos a prestação de contas com o ressentimento e a culpa. Dizem que o verdadeiro desejo é o de desejar, por isso a virtualidade é o paradigma do mundo. Continuaremos dirigindo a vontade e o desejo como alguém que usa uma panela de pressão para cozinhar mais rápido.

Contudo, isso não significa que o secreto morreu, porque ele existe sempre onde não se sabe, é esse seu fundamento. Apenas, não temos mais como sonhar com ele. Trabalhamos tanto em realizar todos os desejos e necessidades, que fomos bem-sucedidos, não existe mais nada escondido, apenas possível. O acontecimento faz parte do secreto, ele não é da ordem do possível, mas do impossível. Não conseguimos mais sonhar com esse impossível, todos os sonhos estão ao alcance de cada um. No mundo da virtualidade, nada é impossível.

Finalmente, ainda temos alguma esperança genuína. Talvez a própria condição do sonho seja nossa salvação. Acordaremos desse pesadelo. Alguém de preto irá nos oferecer uma pílula colorida, e despertaremos em outro lugar.

 

Ítalo Nascimento, carioca, 30 anos. Doutorando em
filosofia pela PUC-Rio. Estuda Foucault, come pizza
de pepperoni, e faz yoga de vez em quando.

 

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