Solidão pantaneira

Solidão pantaneira
(Foto: Robert Bye/Unsplash)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


Mato Grosso do Sul tem uma população aproximada de 2,7 milhões, o que o torna o sexto Estado menos populoso do país, com densidade demográfica de cerca de sete habitantes por quilômetro quadrado. O Estado de São Paulo, por exemplo, tem densidade demográfica de 179 habitantes por quilômetro quadrado.

Esse mesmo território, vazio de gente, abriga o quarto maior rebanho bovino do país, com vinte e um milhões de cabeças de gado, número quase dez vezes maior que o contingente humano.

O consumo de recursos naturais, financeiros e de território pelos rebanhos não é maior porque abateu-se no Estado, apenas no primeiro quadrimestre de 2019, cerca de dez mil cabeças de gado por dia.

Com um rebanho que se espalha por 16 milhões de hectares, além do plantio de soja que ocupa 2,4 milhões de hectares e o cultivo de eucalipto e cana-de-açúcar que somam quase dois milhões de hectares, os seres humanos encontram-se isolados em pequenos coágulos urbanos, acampamentos sem-terra em constante disputa e alvos de reintegrações de posse ou reservas indígenas historicamente retalhadas e reduzidas seja pelo Poder Judiciário, seja pelo Poder Executivo, separados por centenas de quilômetros de propriedades rurais, “desertos verdes” que tomam conta da paisagem.

O que há de humano neste Estado da Federação está geograficamente apartado pelo agronegócio.

Essa ocupação e confinamento geográficos refletem uma ocupação e confinamento dos interesses políticos e sociais.

No segundo turno das eleições de 2018, Bolsonaro obteve cerca de 70% dos votos válidos nos maiores colégios eleitorais do Estado.

O Ministério da Agricultura, apesar das diversas trocas de ministros recentemente ocorridas, é até hoje pasta comandada pela deputada federal pelo Estado de Mato Grosso do Sul, Tereza Cristina, do DEM-MS. Somente em 2019 o Ministério liberou a utilização de 262 tipos de agrotóxicos.

Conforme monitoramento do Ministério da Saúde, dos 79 municípios do Estado do Mato Grosso do Sul, todos apresentam algum tipo de contaminação das águas, sendo que 65 têm contaminação por todos 27 agrotóxicos dos 27 monitorados pelo ministério.

Os coágulos urbanos do Estado têm suas águas intoxicadas pelos interesses políticos do agronegócio.

Desde 2019 o governo federal já exonerou o diretor-geral e a coordenadora-geral de Observação da Terra do INPE em razão da divulgação de dados sobre o desmatamento da Amazônia.

Apenas no mês de abril deste ano o território do Mato Grosso do Sul registrou um aumento de 674% no número de focos de queimadas que ameaçam o bioma Pantanal.

Aumenta-se o território para o boi, a soja, a cana e o eucalipto, firmando-se o confinamento dos demais interesses. Interesses que, quando confinados demais, tendem a extinguir-se, como as tradições e culturas indígena e quilombola, a diversidade da fauna e da flora, a preservação dos rios.

Os mesmos interesses que desenham a ocupação geográfica do Estado do Mato Grosso do Sul delimitam a ocupação de um discurso político e o confinamento dos demais discursos e vertentes sociais.

O discurso que saiu vitorioso das urnas em 2018 e chancelado por 70% da população sul-mato-grossense pregava a intolerância racial e de gênero.

De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública e Justiça do Estado, Mato Grosso do Sul é o terceiro colocado no ranking de feminicídio do país, perdendo apenas para o Acre e para o vizinho Mato Grosso. As mulheres mais atingidas pela violência são negras.

Há um confinamento do feminino pela violência.

Ainda falando de gênero, segundo o último Mapa da Violência de Gênero, o Mato Grosso do Sul foi o Estado com maior taxa de violência contra pessoas homossexuais ou bissexuais em 2017: 91 a cada 100 mil habitantes, mais do que o dobro da taxa nacional, que foi de 41 por 100 mil.

Há um confinamento do corpo e dos interesses não heteronormativos.

Formam-se desertos verdes pela agropecuária e desertos democráticos pela política.

O confinamento territorial e político caracteriza boa parte da solidão sul-mato-grossense, fazendo com que as diferenças de gênero, cor, culturas, de renda, sejam vividas e orientadas a partir de referenciais estabelecidos pelo outro que os confina.

Agora esse manejo das pessoas quase como gado também aproxima os que vivem esses interesses, valores, culturas e existências confinadas.

Essa aproximação tímida, sufocada e constrangedora no início, vai permitindo que os confinados reflitam juntos sobre a própria situação e repensem o território que habitam, bem como os interesses que os isolam. É necessário cultivar, estimular e proteger esses encontros. É necessário amparar essas solidões em cada um dos pequenos coágulos urbanos do Estado de Mato Grosso do Sul.

Henrique Komatsu, 37, é servidor público em Campo Grande, MS

 

 

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