Solidão Incomensurável

Solidão Incomensurável
Foto: Jaredd Craig/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”. 


Solidão não é simples, se manifesta de diversos modos: por vezes chega a ser palpável, pode ser cinza e fria tal qual concreto em clima invernal, pode ser facilmente definida ou não, pode pesar ou ser alívio, pode ser muito e muitas coisas. Senti-la é, sem dúvidas, anúncio que brota das camadas mais internas. Além do sentir e como sente, há quem sente, como e por quê.

Há uma parcela significante da população brasileira que sente a solidão de um modo um tanto diferente e específico, a saber, as mulheres negras. Nascer mulher negra implica solidão, é algo indissociável e multidimensional. A solidão da mulher negra – expressão já bastante difundida – não é tão somente de caráter afetivo-sexual, mas fenômeno que permeia a totalidade de uma vida.

Como? Ora, por exemplo, cabelos. Desde criança mulheres negras são obrigadas a dissociar-se de seus corpos com o intuito – inútil – de caber em um ideal estético inalcançável para ser possível circular socialmente com menos críticas vexatórias. Ter “cabelo duro” significa ser menos humano, uma vez que o negro, e tudo o que lhe é natural, foi constituído como inumano – e feio – por um grupo que detém o poder epistemológico.

Portanto, passar por uma experiência estética diferente dos demais de “cabelo bom” é uma das formas pela qual a solidão se apresenta nesse recorte. Outro exemplo, que é tratado com maestria pela psicanalista negra Neusa Santos Souza em seu livro Tornar-se Negro, é a situação do negro em ascensão. A autora tinha por intenção reflexionar sobre “o custo emocional da negação da própria cultura e do próprio corpo” analisando as narrativas das pessoas negras em ascensão.

Porém, percebe-se, principalmente nas narrativas negras femininas expostas no livro, a solidão como pano de fundo, uma vez que ascender socialmente pressupõe presença em espaços majoritariamente brancos. Nesse recorte há que se fazer uma espécie de pacto nos moldes “você finge ser eu, que finjo que te aceito”. Estar em dois “mundos” distintos – dos negros e dos brancos – caracteriza solidão, pois há necessariamente um descolamento dos estereótipos atribuídos às mulheres negras. E o custo do descolamento é o limbo.

O limbo é um lugar de não lugar, um não pertencimento generalizado. É nesse não lugar que surge a “preta metida”, que nada mais é do que uma mulher negra que aderiu, geralmente por vias educacionais formais – e tudo o que isto implica –, à ascensão. Como supracitado, estar em ascensão pressupõe presença em lugares brancos, mas também acesso a variados itens, conteúdos etc. não insólitos aos brancos.

Uma mulher negra com doutorado, por exemplo, ocupa um lugar altamente privilegiado e qualificado na sociedade, mas, como está no “mundo dos brancos”, a máxima é “eu finjo que te aceito”. O que resta a essa mulher é sentir-se, inescapavelmente, isolada, só; solidão. Ter de lidar com tudo o que lhe atravessa enquanto mulher negra é sobremaneira dispendioso.

Solidão para uns pode ser muito e muitas coisas, mas para outros… é incomensurável.

Fabiola Christovão, 27, é administradora e reside no do Rio de Janeiro.

 

 

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