Sobrevivendo no inferno: ainda e sempre

Sobrevivendo no inferno: ainda e sempre
Racionais MC's na Basílica de Nossa Senhora do Carmo, 1997, São Paulo ( Foto Klaus Mitteldorf/Divulgação)

 

Na Divina comédia, como se sabe, entramos pelo inferno: é lá, entre as mais terríveis formas de punição e sofrimento, que vamos dar os primeiros passos com Dante e seus guias. Na obra dos Racionais MC’s, também estamos no inferno desde o início, sem ter, no entanto, a perspectiva do purgatório, muito menos do paraíso. Nossos guias – Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay – são quatro jovens negros da periferia de São Paulo, cantando no meio das regiões mais violentas do país, onde a morte, a dor, a opressão, a miséria, a fome e a desesperança atingem milhares de pessoas. Ali, a trilha entre o além-túmulo e o aquém-túmulo é minúscula – e escorregadia.

Compreendo todos que têm afirmado que Sobrevivendo no inferno, disco de 1997, é o ponto alto da produção do grupo, mas gosto de ouvir a obra dos Racionais como um conjunto totalmente coeso sob as diversas feições (de forma e de conteúdo) que já assumiu em discos diferentes. Nessa perspectiva, não ouço Sobrevivendo no inferno como o auge da carreira; ouço-o como um ponto de maturidade, entre tantos (normalmente correspondentes aos discos em estúdio), de uma carreira que se distingue justamente por ter iniciado em altíssimo nível e, desde então, conseguido refletir sobre suas próprias contradições para voar ainda mais alto a partir delas.

Chama atenção, na capa do disco de 1997, o gerúndio: naquele momento, os Racionais sabem que continuam sobrevivendo no inferno (“contrariando as estáticas”, como Mano Brown canta), porque sobreviver no inferno é o que une as vozes dos Racionais e as de seus milhões de fãs da primeira à mais recente gravação. Toda a obra dos Racionais, a seu modo, é um sobrevivendo no inferno. Por isso, a meu ver, antes de entrar nos diversos círculos do disco de 1997, é preciso voltar quase dez anos e ouvir com atenção as primeiras gravações do grupo e tudo que fizeram desde então.

A primeira aparição dos Racionais MC’s em disco se deu na coletânea Consciência Black – Vol. 1, da Zimbabwe. É importante notar que o grupo surge numa coletânea, como tantas outras que foram lançadas à época, quase sempre por “equipes” que promoviam os famosos “bailes black”, como a própria Zimbabwe, Kaskatas e Chic Show. As coletâneas, além de serem uma forma de driblar restrições orçamentárias de produtores e grupos que estavam longe de viver a pujança das grandes gravadoras e artistas da época (como as estrelas do rock nacional), eram também uma oportunidade de testar os sucessos de uma geração importante, mas de qualidade muito variada, criando condições para que se projetassem dos bailes para as rádios e que, a partir dali, pudessem fazer os bailes mais fortes, lançar outros artistas e assim sucessivamente, fortalecendo toda a cena black que se armava em torno das “equipes”.

No entanto, assim como ainda hoje não gostam de subir ao palco apenas para festejar, os Racionais entraram na coletânea Consciência Black com os dois pés no peito do porteiro: “Pânico na Zona Sul” e “Tempos difíceis”, em meio às letras leves e à batida dançante de alguns “melôs” (com exceção de Sharylaine e Criminal Master, cujas letras justificavam a presença num disco que levava na capa a palavra “consciência”), colocavam na mesa não apenas os temas a que o grupo se dedicaria, mas também uma forma de fazer rap, de tocar e cantar, que marcaria os trabalhos do grupo e, com seu sucesso, a maior parte do rap nacional até os dias atuais.

Não considero exagerado afirmar que os Racionais daquelas primeiras gravações já apresentam, ainda que em forma parcialmente desenvolvida, a complexidade estética dos seus melhores momentos posteriores. Procure aí essas gravações e faça um teste: ao ouvi-las, tente abstrair a letra e reparar apenas na música – nos sons todos – que toca ao fundo. Não é apenas uma “base” sobre a qual os rappers colocam suas vozes: há um baile acontecendo ali, nos “samplers” e “scratches”, enquanto as letras vão retratando a vida terrível a que aquele povo, que merece ser feliz, é submetido. E esse mesmo teste pode ser feito com quase todas as músicas dos Racionais desde então. Claro, dali em diante, a cada disco, os Racionais têm acesso a mais recursos musicais e técnicos, o que deixa suas músicas com mais camadas, mas o nó baile-fúria se mantém.

É inegável que, com suas letras, os Racionais querem chamar o povo preto à consciência, e o fazem de diversas maneiras, nem sempre explícitas, durante as três décadas (até aqui!) de existência do grupo, mas, ao reparar no “baile” que toca sob as letras, constatamos algo ainda mais brilhante: aqueles quatro jovens, todos com cerca de 20 anos, sabiam desde o início que chamar à consciência não poderia ficar apenas nas palavras, mas também na forma como a cultura negra seria valorizada como um todo junto às suas letras fortes, com destaque, claro, para a música negra.

O grupo de 1989 é o mesmo que vai, depois de duas décadas, deixar seus shows cada vez mais “dançantes”. Basta lembrar que, no disco/DVD ao vivo Mil trutas, mil tretas (2006), Brown exalta o “som de preto” e diz que quer “ver os pretos dançar, ser feliz”. Ou o batuque que abre “Quanto vale o show”, no disco Cores & Valores (2014): “a primeira coisa que eu aprendi a fazer na minha vida”. E nem preciso falar do disco solo de Mano Brown, Boogie Naipe (2016): baile total!

Mano Brown, em foto de divulgação do disco Sobrevivendo No Inferno. / Foto Klaus Mitteldorf
Mano Brown em foto de divulgação do disco Sobrevivendo no inferno (Foto Klaus Mitteldorf)

Se as equipes do “baile black” chamaram os Racionais para subir ao palco (e eles subiram, colocando “peso” e algum amargor na festa), trinta anos depois é a vez de os Racionais chamarem o “baile black” para seu palco, devolvendo a leveza, o suingue e, principalmente, os temas e sonhos que tiveram que “esconder” num primeiro momento. Em entrevista recente, Mano Brown traçou, com precisão, um arco que ajuda a entender as três décadas de baile e fúria dos Racionais MC’s:

E hoje, passados os anos, eu penso: o que um moleque de 21 anos podia fazer de tão mal contra o sistema, fora aquele rap? Era a arte do blefe: eu pesava 70 quilos, não tinha dinheiro pra pegar um ônibus e já ameaçava o sistema. E o sistema acreditou. Entendeu? O que eu poderia fazer contra, mais, fora aquilo ali? Sei lá, pegar uma arma, virar assaltante, morrer rápido? Então… a leveza da música, o lado leve, que ninguém percebia, era a idade que a gente tinha. A gente não tinha condições de fazer muita coisa fora a música. Hoje em dia eu tenho condições de fazer muito mais. Até falando de amor. Eu sou muito mais perigoso.

Na mosca: o percurso dos Racionais é justamente a longa caminhada que vai dessa “arte do blefe” até o momento em que, falando de amor, o rap pode ser ainda mais “perigoso”, sempre andando à beira do abismo de possibilidades de “morrer rápido” que era e ainda é a vida dos jovens negros na periferia de São Paulo. Como “periferia é periferia em qualquer lugar”, não demorou para que aquele moleque de 70 quilos e seus parceiros entrassem no coração de milhões de jovens em todo o país, fazendo com que a história do grupo se confunda com a história de toda a sua geração.

Não posso me deter aqui nas diversas formas que esse nó entre baile e fúria assumiu nas gravações seguintes dos Racionais até Sobrevivendo no inferno (e, claro, dele em diante), então deixo aqui como sugestão esse teste de audição que, ao menos num primeiro momento, comete a crueldade de fatiar os Racionais para ser capaz de reconhecer a grandeza do projeto estético do grupo: ouvir só a letra, ouvir só a música (por música, aqui, entenda-se todo o complexo de sons – sirenes, tiros, freadas, choro, rádio etc. – que espalharam pelos discos) e, depois, fazer a audição integral da música, ou melhor, dançar no ritmo dela, mas sempre dançar com fúria.

Nos EPs Holocausto urbano (1990) e Escolha o seu caminho (1992), além de “Pânico na Zona Sul” e “Tempos difíceis”, o grupo apresenta outras seis faixas que confirmam essa fusão entre o discurso que se propõe a conscientizar os iguais (sobre questões raciais e sociais) e o avanço estético do grupo, que vai colocando ainda mais camadas musicais entre a base e a letra das músicas. “Voz ativa”, por exemplo, leva essa dupla pancada – letra e música – ao extremo: “Eu tenho algo a dizer/ E explicar pra você/ Mas não garanto porém/ Que engraçado eu serei dessa vez”. Enquanto Brown, Blue e Edi Rock cantam uma letra que resume numa espécie de manifesto as ideias que vinham aperfeiçoando até ali, desafiando o racismo em diversos níveis da sociedade brasileira e lançando inclusive suas lideranças, o DJ KL Jay leva o baile também ao extremo, colocando para dançar a “juventude negra que agora tem voz ativa”.

Raio X do Brasil (1993), primeiro LP do grupo, em que estão algumas das faixas que projetam definitivamente os Racionais – “Fim de semana no parque”, “Mano na porta do bar” e “Homem na estrada”, entre outras que já faziam a fama do grupo nos anos anteriores –, é uma obra-prima que consolida o que os Racionais significariam na cultura brasileira dali em diante: ninguém mais poderia falar de música e de arte em geral no Brasil, entre outros temas, sem considerar aquele grupo que levou milhões de ouvintes para passear nos “parques” das periferias brasileiras e, assim, colocou no centro das atenções – de quem vive nas periferias e também de quem vive bem longe delas – uma forma de olhar para o país, para seu povo, para suas injustiças e violências, que não se encontrava em disco algum, em jornal algum, em novela alguma.

É a partir daí, do reconhecimento nacional (inclusive dos inimigos públicos e detratores privados) que veio durante esse percurso, mas principalmente da força que as ideias e os sons do grupo ganham nas “quebradas” em que os Racionais se gestaram, que podemos entender a força que terá, em 1997, o lançamento de Sobrevivendo no inferno, que chega esvaziando o lugar para o “estilo pesado” e “a palavra [que] vale um tiro” do grupo que encarna a “fúria negra”. Mano Brown, então, vai precisar de muita humildade para se apresentar como “apenas um rapaz latino-americano/ apoiado por mais de 50 mil manos”, porque ele e seus parceiros já são vistos como gigantes, com milhões de ouvidos atentos a suas batidas e palavras e de olhos arregalados diante do inferno que os Racionais, como nenhum outro artista, descortinam.

Edi Rock, em foto de divulgação do disco Sobrevivendo No Inferno. / Foto Klaus Mitteldorf
Edi Rock em foto de divulgação do disco Sobrevivendo no inferno (Foto Klaus Mitteldorf)

No coração do inferno (e vice-versa)

É com justiça que Sobrevivendo no inferno ganha agora todo esse destaque novamente, após a indicação para um dos principais vestibulares do país – Unicamp – e a consequente edição em livro, pela Companhia das Letras, com a transcrição das letras precedida de uma bela apresentação de Acauam Silvério de Oliveira.

Quem tem o ouvido viciado na batida do rap sabe que o “livro de letras” não é o suporte perfeito para a obra dos Racionais – em que o nó entre letra e música, com elementos de baile e fúria que se expressam numa e noutra esfera, fundindo-as para atingir os altos níveis que somente assim atinge –, mas é importante ter as letras desse disco transcritas de modo confiável, levando-as também a quem ainda não as sabe de cor e, agora, poderá ir ao disco conhecendo antes, como texto, as letras.

O livro Sobrevivendo no inferno é um produto para o vestibular, claro, mas vai além dele, porque os Racionais estão em muitas esferas que transcendem o vestibular e a universidade. Aliás, é o disco que vai cair no vestibular, não o livro, a letra sem a batida. E espero que todos os envolvidos assim tratem – como um todo! (A propósito, diversas vezes transcrevi as letras dos Racionais, discos inteiros, porque nos encartes não havia a versão “oficial”, e depois discutia com amigos essas transcrições, os versos que não entendia perfeitamente, as gírias que não conseguia sacar etc.)

Como um todo, repito, Sobrevivendo no inferno é uma pancada – musical, cultural, histórica, política, poética. Para entender a força dessa pancada, a filósofa Djamila Ribeiro usa uma imagem muito precisa: organizar o ódio. Os Racionais se tornaram e mantiveram e cresceram como Racionais porque souberam organizar o ódio. Não reagiram da forma autodestrutiva como o sistema previa: se armaram de ritmo e poesia e partiram para o ataque – fúria e baile. É por isso que Acauam Oliveira pode dizer, enfaticamente, que esse “é um disco que salvou vidas”.

Essa organização do ódio nos Racionais é a razão do alcance estético e político do disco, na época e ainda hoje. Mais que isso: é o que dá a Sobrevivendo no inferno o status de obra-prima, capaz de continuar produzindo sentidos, cada vez mais intensos, com o passar do tempo. Note-se, ainda, ilustrando essa capacidade de organização, uma passagem da introdução do livro, em que Acauam Oliveira chama a atenção para a estrutura do disco, que se assemelha à de um culto religioso:

[…] cântico de louvor e proteção direcionado ao santo guerreiro (“Jorge de Capadócia”); leitura do evangelho marginal (“Gênesis”); entrada em cena do pregador do proceder, explicando (ou confundindo, a depender da necessidade) os sentidos da palavra divina (“Capítulo 4, versículo 3”); o momento dos testemunhos das almas que se perderam para o diabo, com resultados trágicos (“Tô ouvindo alguém me chamar” e “Rapaz comum”); intermezzo musical para velar aquelas mortes, interrompendo por tiros que fazem recomeçar o ciclo; a pregação ou mensagem central (massacre do Carandiru) que liga o destino daqueles sujeitos ao de toda a comunidade (“Diário de um detento”), chave de compreensão do destino de todos e descrição do próprio inferno; exemplos do modo de atuação do diabo no interior da comunidade (“Periferia é periferia”); exemplos do modo de atuação do diabo fora da comunidade (“Qual mentira vou acreditar”). Ao final, um momento de autorreflexão sobre os limites da própria palavra enunciada (“Mágico de Oz” e “Fórmula mágica da paz”) e os agradecimentos a todos os presentes, verdadeiros portadores da centelha divina (“Salve”). […]

De fato, quem vê a cruz dourada na capa do disco (e, agora, do livro), o objeto simulando um exemplar da Bíblia (já no disco), concorda que, para os Racionais daquele momento, principalmente, uma das formas de sobreviver no inferno – uma das formas de salvar vidas – é a religião. Mas logo descobre que a “Bíblia velha” está ao lado de “uma pistola automática e um sentimento de revolta”.

E é justamente por isso, porque não simplifica as formas que o ódio assume lá onde “o demônio fode tudo”, que o disco é tão forte. Na verdade, avançando num caminho em que mais e mais se reconhecem naqueles que antes criticavam duramente –seus iguais, outros “rapazes comuns” –, os Racionais não podem simplificar.

O cenário e os personagens das músicas são os mesmos de sempre: a periferia, mas agora aproximada, de modo radical, do destino dos jovens negros que sobrevivem ali – o cemitério ou a cadeia, onde a morte também o espera. A cadeia como antessala do cemitério. A vida no crime como atalho para o cemitério. Aliás, é um disco todo à beira da morte, por isso leva a palavra “sobrevivendo” na capa. À beira, sim, mas também de luta contra a morte cada vez mais próxima, banalizada, porque ali, “na lei da selva”, a relação entre rapazes comuns é mediada por um simples “click, cleck, bum”, de lado a lado: “no pente tem quinze sempre a menos no morro”.

A morte: a morte nas mãos da polícia, na rua ou na cadeia; a morte por traição dos próprios parceiros de crime. Há mortes por todos os lados. Em alguns momentos, são os mortos que falam, vendo do além o sofrimento dos seus parentes. Há corpos por todos os lados. É como se os Racionais tivessem espalhado pelo disco todos os 111 corpos do massacre do Carandiru e todos os corpos das vítimas de violência policial, de todas as vítimas da violência entre os “rapazes comuns” da periferia, para que ficassem ali para sempre, doendo, como feridas abertas – como no inferno.

Com esse gesto, os Racionais nos obrigam a refletir sobre o que ainda pode ser chamado de “vida” nas regiões mais pobres da cidade – ou do muro do presídio para dentro. E eles sabem: “minha vida não tem tanto valor quanto seu celular”. De fato. São famosas as estatísticas que abrem “Capítulo 4, versículo 3” na voz de Primo Preto, “mais um sobrevivente”: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial/ A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras/ Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros/ A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo”.

Uma pesquisa recente feita por jornalistas da BBC News Brasil confirmou a atualidade desses dados depois de duas décadas. O que mudou? Muito pouco, salvo no item do acesso dos negros à universidade (“O percentual de negros com nível superior quase dobrou entre 2005 e 2015, fruto da política de cotas implantadas em universidades públicas e programas de bolsas e financiamentos para estudantes pobres, como Prouni e Fies”). Nada mais justo e apropriado, portanto, que a arte dos Racionais também chegue com mais destaque à universidade, não?

Racionais MC's na Basílica de Nossa Senhora do Carmo, 1997, em São Paulo, em ensaio de divulgação do disco Sobrevivendo no Inferno / Foto Klaus Mitteldorf
Racionais MC’s na Basílica de Nossa Senhora do Carmo, 1997 (Foto Klaus Mitteldorf)

Sobrevivendo no inferno é gigante também porque é o disco em que os Racionais rompem com a autoimagem que vinham construindo até ali, tantas vezes colocando-se numa posição de superioridade com relação aos demais jovens negros, normalmente sob a acusação de que não eram conscientes como os rappers. Agora, no entanto, “respeito mútuo é a chave”. No lugar do enfrentamento com aqueles que, no fundo, são seus iguais, entra um esforço tremendo para derrubar as barreiras e mostrar que os rapazes comuns do rap se reconhecem nos rapazes comuns da “vida bandida”, nos rapazes comuns das igrejas, das escolas, do “sonho de doutor”; que “periferia é periferia em qualquer lugar”; e ganha até mesmo uma dimensão mais crítica/autocrítica: “Eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá/ Minha ideologia enfraqueceu/ Preto, branco, polícia, ladrão ou eu/ Quem é mais filha da puta? Eu não sei!”.

Vem daí, dessa mudança de percepção da sua própria existência e de uma visão mais complexa sobre os demais personagens da vida na periferia (os bandidos, os policiais, os trabalhadores, as tiazinhas, os pastores, os estudantes, que, no fundo, sejam pretos ou brancos, são todos pobres e estão lutando para sobreviver no inferno), alguns dos pontos altos do disco, como esse trecho de “Fórmula mágica da paz”:

2 de novembro era Finados
Eu parei em frente ao São Luís do outro lado
E durante uma meia hora olhei um por um
E o que todas as senhoras tinham em comum
A roupa humilde, a pele escura
O rosto abatido pela vida dura
Colocando flores sobre a sepultura
Podia ser a minha mãe, que loucura!

Cada lugar uma lei, eu tô ligado
No extremo sul da Zona Sul tá tudo errado
Aqui vale muito pouco a sua vida
Nossa lei é falha, violenta e suicida
Se diz, que me diz que não se revela
Parágrafo primeiro na lei da favela
O assustador é quando se descobre
Que tudo deu em nada e que só morre o pobre
A gente vive se matando irmão – por quê?
Não me olha assim, eu sou igual a você
Descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho
Que no trem da malandragem, meu rap é o trilho

Depois de alguns anos, na versão ao vivo em Mil trutas, mil tretas, Brown troca o “malandragem” do original por “humildade” no último verso. Sempre me chamou muita atenção essa troca. Grande poeta que é, Mano Brown não usa nenhuma palavra à toa, tudo tem um peso calculado nas suas letras, seja no original ou na hora que voltam aos palcos (quando voltam…). Que o rap, de “trem da malandragem”, tenha se tornado – ou queira se tornar – “trem da humildade” é mais um indicativo de mudança de postura para continuar sobrevivendo no inferno. Diria mais: a palavra “humildade” até mesmo combina mais com o clima geral do disco de 1997, um disco em que a “malandragem” é questionada profundamente: “a vida bandida é sem futuro”.

O pianinho suave que acompanha o “Salve”, última faixa do disco, toca fundo. A geografia periférica que os Racionais traçam nos agradecimentos estende o roteiro daquele “trem da humildade”, que passa recolhendo aliados e afastando “os porcos”. As grades caem e a “comunidade do outro lado do muro” se funde, no corpo dos sobreviventes, aos bairros mais pobres de São Paulo, da região metropolitana, de outros cantos do país. É ali que a “trilha sonora do gueto” vai salvar vidas.

Outros círculos

Da mesma forma que, no início, defendi que para entrar em Sobrevivendo no inferno é necessário olhar com muita atenção como a obra dos Racionais se constitui até ali, olhar para o que fizeram depois obviamente também ajuda a compreender melhor a dimensão daquele disco específico dentro de uma obra que, como já disse, gosto de ver como um todo cheio de revisitações, reflexões, conexões internas etc. Em alguma medida, é como se o grupo, a cada largo passo que deu, colocasse para si mesmo desafios que se resolvem – ou reenfrentam – nos trabalhos seguintes.

Passaram-se longos cinco anos até que os Racionais voltassem ao estúdio depois de Sobrevivendo no inferno. Os fãs não puderam, no entanto, reclamar do que lhes foi entregue ao final dessa temporada de ansiedade sobre o que viria depois daquele grande disco e, ao mesmo tempo, de incertezas sobre a continuidade do grupo. A forma esquiva como os Racionais sempre lidaram com a grande mídia, numa época anterior à da comunicação direta pelas redes sociais, era um prato cheio para alimentar teorias conspiratórias sobre a vida do grupo e de seus integrantes, mas eles não cederam e o disco duplo Nada como um dia após o outro dia (2002) chegou provando que os Racionais MC’s ainda tinham muitos círculos do inferno a apresentar.

“Jesus está por vir, mas o diabo já está aqui” – o disco começa com uma rajada, seguida do canto de um galo e da campainha chata do despertador. Os Racionais voltam olhando frente a frente para seus manos – e olhar para seus manos é o mesmo que se olhar no espelho – e gritam: vamos acordar, vamos acordar! Enquanto a letra vai mandando erguer a cabeça e a guarda para as tretas da “vida loka”, o baile toma toda a atmosfera do disco, porque “até no lixão nasce flor”. Nas mais de vinte faixas do disco, os Racionais apostam em outras formas de sobreviver no inferno.

A perfeição de letras como “Vida loka” (I e II), “Negro drama”, “Jesus chorou” e “Da ponte pra cá”, somada à riqueza sonora de todo o disco, faz de Nada como um dia após o outro dia o álbum preferido da maior parte dos fãs dos Racionais – não fiz esta pesquisa, mas é a impressão que tenho. Aliás, o disco cria uma nova legião de fãs (e admiradores mais comedidos) dos Racionais. E nada nele é por acaso.

Racionais MC's, em foto de divulgação do disco Sobrevivendo No Inferno. / Foto Klaus Mitteldorf
Racionais MC’s em foto de divulgação do disco Sobrevivendo no inferno (Foto Klaus Mitteldorf)

O grupo que vinha do sucesso de Sobrevivendo no inferno parece ter decidido fazer um disco ostentação. Foi-se o tempo das coletâneas, dos EPs, dos improvisos: “tudo vai, tudo é fase/ logo mais vamo arrebentar no mundão”. Desde a foto da capa, os Racionais chegam num disco grandioso, duplo, que reúne tudo o que tinham recolhido de melhor até ali: todas as conquistas estéticas e políticas da trajetória, tudo o que aprenderam na marra, o que deu certo nos trabalhos anteriores, tudo agora é levado para outro nível, inclusive em termos de produção, de técnica, de qualidade. Aqueles quatro rapazes que, nos anos 1980, muitas vezes não tinham grana para se deslocar até os bailes, agora tinham condições de produzir um disco à altura das suas pretensões e do seu talento absurdo: “preto e dinheiro são palavras rivais, é?”

A espera pelo novo trabalho de estúdio, depois de Nada como um dia após o outro dia, foi ainda maior. Cores & Valores saiu apenas em 2014, mas desta vez os fãs dos Racionais não tinham passado todo o período sem notícias sobre o destino do grupo e dos integrantes. Os Racionais tinham se projetado muito com o trabalho anterior e, digamos, ampliaram bastante os negócios: shows em casas maiores em todo o país, parcerias com muitos artistas de estilos diferentes e uma abertura maior para a imprensa tornaram mais fácil a vida de quem queria acompanhar seus passos.

Mas Cores & Valores não veio trazer os Racionais de sempre para o palco. Pelo contrário: é mais uma revolução. Muitos fãs torceram o nariz para o disco complexo, truncado, cheio de camadas sonoras e letras densas, algumas fragmentárias, oferecendo pouco mais de 30 minutos de duração total depois de uma espera tão longa. Eis o segredo de Cores & Valores, a meu ver: não é o menor disco do grupo, mas sim a sua maior música. Uma pequena ópera, em que as peças são encadeadas de modo às vezes inusitado, refletindo sobre a história do grupo, encarando novamente seus temas mais difíceis. Uma espécie de balanço (com muito balanço) quando o grupo vê que é hora de ir novamente para o espelho se reinventar, inclusive pelo que acontece ao seu redor no rap nacional, mas também na música em geral, na cultura e na política do país.

Por fim, cabe anotar que, entre os dois últimos discos de estúdio, os Racionais deram ao público dois trabalhos muito importantes: Mil trutas, mil tretas (2006), trabalho ao vivo lançado em CD e DVD, e a coletânea em comemoração de aniversário, Racionais MC’s 25 anos (2013). Observar o que acontece com os Racionais – suas escolhas – nesses trabalhos “intermediários” e mesmo em cima dos palcos, entre um disco de estúdio e outro, é fundamental para entender melhor o conjunto e, quem sabe, perceber os rumos que o grupo vai tomar, ainda que não haja garantia quanto a isso: a regra dos Racionais é “um, dois, nem me viu, já sumi na neblina”.

Basta lembrar que Cores & Valores surpreendeu muita gente também porque não recolheu algumas músicas que já circulavam bastante pela internet e shows como se fossem “do próximo disco”, entre elas as excelentes “Mente do vilão” e “Mil faces de um homem leal”. Se sempre houve muita especulação quanto ao presente dos Racionais, imaginem então quanto ao seu futuro. Enquanto isso, as entrevistas, os trabalhos individuais e outras parcerias dos integrantes do grupo vão dando força à única certeza que podemos ter agora: os Racionais MC’s ainda têm muita munição.

TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP, autor de Alguns rastros (Martelo, 2018) e Íntimo desabrigo (Alpharrabio/Dobradura, 2017)

Este texto apresenta, em versão preliminar, ideias que estão sendo desenvolvidas pelo autor no livro Muita treta: ritmo, poesia e fúria dos Racionais MC’s, que reunirá uma série de ensaios sobre cada um dos discos do grupo.


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