Sobre a matança dos Guarani Kaiowá

Sobre a matança dos Guarani Kaiowá

Menino da etnia Guarani Kaiowá na Rio+20, conferência da ONU para o desenvolvimento sustentável. Junho de 2012, Rio de Janeiro

Sabemos muito pouco sobre os povos indígenas brasileiros. Dá pra dizer que justamente por isso sabemos pouco sobre o Brasil. Esse conhecimento fica de antropólogos e alguns historiadores. Eles também são poucos e o assunto é imenso.

Temos, portanto, o dever de olhar para a vida desses povos com mais respeito ainda, o respeito de quem é ignorante.

Não podemos pensar que o Brasil seja apenas o resultado da colonização europeia e que o passado ligado aos povos tradicionais que aqui habitavam (e onde muitos ainda habitam) seja menos importante. Vivemos sob a ideologia de que o Brasil é algo novo, mas o que chamamos de “novo” é só uma parte da história. Dizer 500 anos de Brasil (hoje, 515) é algo que vale para a teoria da história e o fazer historiográfico, mas é uma inverdade se levarmos em conta nossa história subterrânea. A história que não temos como conhecer por que vivemos colonizados, pensando que a história que vale é a dos nossos ancestrais europeus e da colônia na qual fomos criados.

Mas há essa história subterrânea, uma história que é até hoje, e cada vez mais, soterrada, que é verdadeiramente recalcada. Essa história é a dos indígenas. E também é a história dos africanos que vieram parar aqui pela violência da escravização.

Há também a história dos italianos e alemães, mas estes trazem marcas de preconceito imensas e se aliam facilmente aos seus ancestrais-algozes porque sempre é mais fácil aliar-se aos fortes e fingir que eles não nos fazem mal.

No contexto do apagamento histórico se coloca também que os povos indígenas são “privilegiados” como ouvi de um senhor de meia idade, advogado sem qualquer reflexão minimamente crítica sobre a sociedade em que vive. Seu pensamento representa uma tendência dominante há muito tempo, aquela que promove o apagamento dos índios. Eu, que estou treinando diariamente sobre “Como conversar com um fascista”, sugeri-lhe pensar na importância da “convivência”. Em vez de matar uns aos outros, por que não encontrar caminhos de convivência a partir de respeito aos direitos fundamentais, tais como o direito à vida e à vida decente, à moradia, à saúde, a não sofrer preconceito de raça, gênero, etc?

Mas a questão mais simples era entender por que ele repetia esse tipo de discurso absurdo sobre o “privilégio” dos indígenas (e, acrescentou: quilombolas!) se não era ruralista, nem fazendeiro, mas um cidadão da cidade? Por que aquele homem se fazia uma espécie de “papagaio” que reproduz uma fala pronta há séculos? Certamente, se trata de uma fala de adesão à ideologia de classe, em que falar mal de indígenas “pega bem”, é o “politicamente correto” do politicamente incorreto. Com isso se consegue criar um ódio sem igual que cai sobre os indígenas, aquele ódio que usa todo tipo de arma para matar: desde a arma de fogo, até a negligência e a fome. Os povos indígenas vem sendo mortos há muito tempo com o uso das mais variadas armas.

Com esse tipo de ideologia se consegue também apagar que somos enquanto “Brasil” um evento de invasão de terras de povos que viviam aqui e que alguma coisa que ficou para trás junto com a história deveria ser recuperada com urgência.

Ora, o que vem ficando para trás é o direito dos indígenas escondido atrás de uma cortina pesadíssima de desconhecimento. Desconhecimento que favorece o esquecimento. Esquecimento que leva ao descaso.

Esse direito é específico: direito à demarcação de terras. O direito à vida em seu sentido amplo.

É preciso chamar a atenção para o extermínio de populações inteiras em nosso momento atual, como acontece com os Guarani Kaiowá que esperam há dez anos a demarcação de suas terras. O STF suspendeu o decreto que lhes dava essa garantia para que possam voltar a viver segundo seus costumes. Uma questão se torna fundamental aqui. Para quem é de classe média, “terra” talvez seja um aspecto distante demais e não cause empatia. Imaginemos então ficar sem nossas casas, o lugar onde nos estabelecemos confortavelmente para viver?

Para quem sabe o que significa “terra” a coisa é mais interessante. Os ruralistas sabem que, no futuro, essas terras valerão mais do que hoje. Ruralistas pensam em termos econômicos. Um ruralista típico não vê nada, senão capital pela frente. Ele não vê a casa dos outros. Ele vê apenas a sua própria conta bancária, suas posses e a herança de família que, é bem provável, ele ame mais do que a seus próprios filhos.

O sujeito da mentalidade ruralista olha para uma pessoa indígena como se ela não fosse uma pessoa, mas apenas um entrave ao seu projeto econômico.

As instituições do poder legislativo, executivo, judiciário e midiático lotadas que estão de interesses e interesseiros ligados a esse setor, só podem dar o aval da matança.

Se na escola aprendemos mais sobre a história europeia e sobre a história branca do Brasil do que sobre a história dos povos tradicionais e da escravização que está em nosso DNA cultural, econômico e político, hoje devíamos voltar atrás e pensar em quem não fomos e em quem estamos sendo diante da matança dos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

A destruição dos povos indígenas, os povos originários do Brasil, é o sinal claro de que vamos muito mal em todos os sentidos. Se não pudermos nos solidarizar com essas pessoas indígenas ameaçadas e atacadas duramente nos últimos tempos, basta esperar pelo nosso próprio extermínio. A lógica do assassinato em massa, do extermínio de sociedades inteiras, pertence a muita gente, faz parte da história e sempre cai sobre os mais fracos.

A nossa vez também chegará. E não sabemos se haverá alguém que possa nos ajudar a viver. A esse apoio se chama solidariedade. Uma prática também apagada no cenário capitalismo destrutivo e autodestrutivo.

Para saber mais:

http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8337&action=read

http://www.cartacapital.com.br/blogs/parlatorio/mais-um-capitulo-sangrento-da-saga-guarani-kaiowa-6501.html

http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8013&action=read

http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/11/sobrenome-guarani-kaiowa.html

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