Sobre a solidão do voo migratório dos pernilongos

Sobre a solidão do voo migratório dos pernilongos
(Foto: Alexander Possingham/Unsplash)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


A casa deu de ter pernilongos. Uma revoada todas as noites. Eles passeavam pela casa em um movimento migratório entre sala, cozinha e banheiro, fazendo o repouso da chegada no meu quarto, entre sete e oito da noite. Nas primeiras noites, não dormi, aplaudindo o meu próprio desespero. Acendia as luzes, mas eles se escondiam. Apagava as luzes, ajeitava os travesseiros e era de bruços que ouvia o primeiro zunido. Não havia palavrão que desse conta da insônia.

Foi só dois dias antes da sua visita que eu tinha aprendido como exterminar pernilongos. Coisa simples, solução de supermercado. Um óleo cheiroso na tomada e, pronto, dormi oito horas seguidas.

Fico pensando que, ao saber da sua chegada, a minha preocupação dobrava de tamanho. A expectativa servia de fermento para as pequenas tarefas que eram adiadas enquanto a única habitante da casa era eu mesma. Tudo me pareceu mais sujo, mais desarrumado, mais fora de lugar, mas nem era tanto assim, desconfio. Trabalhando sessenta horas na semana, não sobrava hora nem para desorganização. Ainda sim, comecei pelos pernilongos, já supondo, e quase torcendo, que você passaria a noite lá.

Perdi uma ou duas horas de sono no dia anterior varrendo passando pano tirando pó. Até o banheiro eu lavei, coisa que podia ter esperado o fim de semana. Troquei a roupa de cama. É preciso valorizar quem troca a roupa de cama pra te receber.

Mas não era da faxina que eu queria falar, tampouco da minha batalha contra os pernilongos.

Eu queria falar sobre como me dei conta, dois dias depois da sua visita, enquanto fazia xixi olhando para o box de vidro extremamente limpo do meu banheiro, que eu te dei demais. Não só pra você, mas pra outras visitas que chegavam à minha casa no mesmo movimento migratório entre sala, cozinha e banheiro, terminando no meu quarto, mas que sempre iam embora, ao contrário dos pernilongos. Dei casa limpa e roupa de cama lavada, além de cozinhar e comprar vinho e pegar uma toalha também muito limpa para o banho, e o próprio banho em um banheiro cheirando a lavanda, quando eu mesma trabalhava sessenta horas na semana e usava a mesma toalha porque na correria sempre me esquecia de pegar uma limpa.

Dois dias depois da sua visita, quando as suas repostas já eram monossilábicas e eu adivinhei olhando o celular pela terceira vez em dez minutos que você não voltaria, eu estava fazendo xixi, olhando para duas toalhas, uma limpa e outra já com uma semana de uso, penduradas em um box reluzente, que eu deveria te dar menos. Muito menos.

Mas ainda não era sobre toalhas sujas e respostas monossilábicas que eu queria falar.

Eu estava fazendo xixi, rodeada por pernilongos, porque nosso campo de batalha tinha se mudado do quarto para o banheiro, quando senti o seu cheiro. Que não era o mesmo perfume de quando nos conhecemos, aquele tinha acabado, você disse. Merda.

Dois dias depois da sua visita, eu tinha uma casa ainda limpa, porque eu nunca estou lá, uma toalha suja, uma usada com o seu cheiro e uma panela com um risoto indo para o terceiro dia. Tinha pernilongos em todos os cômodos da casa, menos no quarto. E não tinha você nem todas as outras visitas, que nem eram tantas assim, mas que eram suficientes para deixar comigo apenas cheiros estranhos e comidas que fiz demais por excesso de zelo e de cuidado com pessoas que me valiam menos que uma revoada de pernilongos migratórios. Fiz xixi inconformada.

Carla Moro, 33, de São Paulo, é contadora de histórias e
observadora da vida selvagem nos grandes centros urbanos.

 

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