Rewald & Ab’Sáber, muita dor e algumas delícias

Rewald & Ab’Sáber, muita dor e algumas delícias
(Imagem: reprodução/ Johann Moritz Rugendas)

 

O encontro de Rubens e Tales – antes de serem Rewald & Ab’Sáber –, no curso de cinema da ECA-USP dos anos 1980, virou filme no começo da década neoliberal seguinte, no objeto cinematográfico não identificado Esperando Telê, algo entre um documentário e um registro interrogativo de uma tentativa fracassada de documentar seu “objeto”, que se desfaz em percursos, aproximações, fragmentos midiáticos, reflexos fugidios de uma grandeza nacional calçando chuteiras, enfrentando o campo pesado, tanto do jogo sujo dos bastidores como da luz enganadora do futebol arte espetacularizado. Telê é uma miragem, prometendo a beleza surgida do caos brasileiro, que parece real, tangível, ao mesmo tempo que se esvanece e escapa, sob a marcação cerrada da ordenação gerencial e da narrativa industrial deste caos – a eficiência da era Parreira desenhando nosso destino na prancheta.

O filme, que demorou 15 anos para ser afinal montado, retira força meditativa do registro precário de precariedades, trafega na contramão da conformação deste mundo de pretensa eficiência fria, que quer tamponar a matéria vertente das contradições nacionais.

A imagem fria é, justamente, o título da dissertação de mestrado de Tales Ab’Sáber, feita na mesma época das filmagens, expondo os limites fetichistas do cinema profissionalizado de seus colegas da ECA. Durante os 15 anos que separaram a filmagem da montagem final de Esperando Telê, Tales e Rubens fizeram um bocado de coisas. Antes de voltar ao cinema mais regular – com ótimos longas de ficção como Corpo e Supernada – Rubens escreveu para grupos de dança e teatro, numa série de colaborações que o levaram à dramaturgia do Teatro Oficina, com Os Sertões. Tales enveredou pela psicanálise e, com a publicação de sua tese na área – O sonhar restaurado –, ganhou o prêmio Jabuti em 2005. Buscas por caminhos excêntricos, por exercícios de percepção dos fragmentos explosivos da vertigem nacional, terra sempre em transe, como recorrentemente lembra o ensaísta glauberiano Tales Ab´Sáber.

Mantendo a forte amizade durante esses anos, seus percursos em diálogo convergiram para a dupla Rewald & Ab’Sáber, assinatura conjunta de trabalhos audiovisuais “zero budget”, como eles gostam de dizer: uma nova posição excêntrica ao eixo de produções, projetos e captações, cinema da e para a internet – com visitas esporádicas às salas de projeção –, feito por montagens dessas peças da constelação nacional, com as quais, de formas variadas, lidam há tanto tempo. Experimentos de justaposições, ensaios alegóricos, por vezes exacerbando repetições, por outras interrompendo fluxos, abrindo frestas contemplativas, ou ainda criando mosaicos perturbadores (talvez novas versões das buscas por Telê), que criam aproximações e tensões entre lados do nosso cotidiano tantas vezes surreal, entre o nosso buraco negro de violência e as edulcorações pop generalizadas, fantasmas nada comunistas que nos assombram, entre a constatação da barbárie, crua ou sublimada em espetáculo, e os lampejos de uma nação em formação.

O primeiro trabalho desta colaboração foi um choque, um alarme de terremoto, infelizmente só sentido em toda sua magnitude quando já estávamos no meio dele. Intervenção, o amor não quer dizer grande coisa, assinado pela dupla e por Gustavo Aranda, membro dos Jornalistas Livres, estreou oficialmente em 2017, no Festival de Brasília, já com Dilma afastada do poder. Mesmo assim, a eleição de Bolsonaro parecia, para quase todos que acompanhavam o noticiário político, uma possibilidade distante e uma piada de mau gosto. A colagem dos vídeos de youtubers de extrema-direita, recolhidos no calor do processo do impeachment, mostrava claramente outra coisa. Foi preciso o horror chegar na sala de jantar, e à rampa do Planalto, para que se parasse de negar a alucinação coletiva exposta no filme.

O mesmo coro de massas sideradas do nazismo, também invisíveis para os alemães elegantes da República de Weimar até que fosse tarde demais, a mesma identificação com o pai da horda – o Mito – por aqueles que renunciam à própria subjetivação, como flagrado por Freud em Psicologia das massas e análise do eu, dez anos antes da ascensão de Hitler ao poder. A versão brasileira contemporânea usava os meios de comunicação de massa democratizados (que não muito tempo antes eram saudados como arautos da liberdade), e ainda não falava em Bolsonaro, mas clamava por intervenção militar, numa sede de violência e eliminação sumária dos inimigos imaginários, substituição da política por uma mobilização psíquica radicalmente paranoica, que a todo momento, no coro dos heróis virtuais alimentados por uma impotência transmutada em adoração aos pais violentos, passavam à fase do delírio, misturando invasões chinesas e conspirações globalistas. O flagrante histórico, composto por uma arqueologia digital do esgoto do presente, foi visto por muitos como mero festival de bizarrices, mas infelizmente revelou-se, logo depois, ao mesmo tempo profético e antigo, em sua exposição obsessiva de obsessões históricas, de uma história que não passa, de uma terra que reencena de novo e de novo o seu transe, da, das ditaduras, de 1964 e de antes, da escravidão, da primeira invasão. Os gritos dos siderados, clamando por genocídio, vinham de nossos inícios, e se projetavam no futuro, numa estrutura de repetição que a forma do filme mimetizava. Aqueles robôs biológicos, protótipos do que viriam a ser os robôs de Bolsonaro, eram também os nossos piores fantasmas.

O trabalho de arqueologia do presente-passado desdobrou-se num novo projeto, a recente série de curtas Democracia e Amor, realizados durante a pandemia. Os autores inauguravam um verdadeiro estilo próprio de colagens dialéticas. Imagens e textos recolhidos na geleia geral da internet, justapostos a músicas, filmes e fotos do patrimônio cultural, num turbilhão que vai deslocando, a cada inserção, os sentidos do que acaba de ser visto. Uma espécie de variante da alegorização tropicalista que, na leitura clássica de Roberto Schwarz, somava elementos arcaicos e modernos em instantâneos do absurdo nacional. Aqui, o absurdo segue firme, com as violências arcaicas marcando presença a todo instante. Mas a montagem executada por Nara Dip, sob direção de Rewald & Ab’Sáber, dialetiza os fragmentos, fazendo-os conversar e oscilar, vibrar em seus sentidos múltiplos. Há indignação, constatação das onipresenças da opressão, mas não congelamento ou conformismo. Há tensão, tesão, promessa e pressão de mudança. Apesar de tudo e tantos.

Esse deslocamento me atingiu com uma surpresa pessoal, que talvez só agora, escrevendo aqui, comece a se assentar. Os textos do primeiro episódio de Democracia e Amor são de dois posts meus publicados no Facebook – procedimento que eles repetiram, com posts diversos de outros usuários das redes, ao longo da série. Quando Tales e Rubens me pediram para usá-los, e eu concordei, não tinha ideia do que viria, e o que veio me desconsertou, me descentrou, revelou pontos de fuga e becos sem saída que cercavam aqueles meus textinhos. Um deles tratava dos ataques à democracia, do assalto à Constituição de 1988, e o outro era uma declaração de amor à minha companheira, a Bia, no dia do seu aniversário, que ela passava distante, por conta da covid-19 – democracia e amor, mas vistos por seus avessos.

O filme, lançado em meados de 2020, começa com um prólogo, embalado por Bijuterias, de João Bosco e Aldir Blanc. Aldir tinha morrido há poucos dias, vítima da pandemia. A homenagem atualizava a ironia lírica do gênio, para sempre associada à abertura da novela O Astro, clássica encenação da picaretagem nacional. Esse era o pano de fundo para uma associação de imagens da indústria cultural brasileira e obras de Niemeyer (o Congresso Nacional e a Igrejinha da Pampulha), vazios brutais rasgados na massa verde da floresta amazônica e um cadáver com a assinatura do Esquadrão da Morte e, no meio disso, um glorioso índio com seu arco apontado para o céu e Antonio Candido, enroscando as mãos, como quem diz “tudo isso junto” – joias ou bijuterias, nessa mistura de relíquias do Brasil?

A leitura da tentativa de análise de conjuntura inicia-se, e a vibração das relíquias aumenta de velocidade: fábricas e santinhos devotos, Juruna, Lula e Brizola, seguidos por Xuxa, Bolsonaro enroscado na máscara mal posta, enfrentando na montagem Shazan, Xerife e os jovens Gil e Caetano. A Constituição da Abertura, que eu louvava no texto, é mesmo uma síntese histórica possível? O delírio é mesmo bolsonarista, ou deliramos nós, enxergando essa síntese desenhada no ar pelas mãos de Antonio Candido? Seria o gesto vazio, e letra nascida morta a Lei democrática, exposta como farsa, sob o peso de nossas contradições?

Depois do choque da foto de Marighella massacrado, sobreposto à fala sobre o novo horror, pandêmico, a sensação de fundo falso – ou melhor, de verdade recalcada sob as minhas palavras – aumentava na perspectivação da minha cartinha de amor, que se seguia. A primeira frase, em que eu declarava a distância da amada, era dita sobre a imagem do pato lavajatista, de uma manifestação de direita na Avenida Paulista. Daí, uma série de imagens de glórias nacionais, de grandes filmes, cineastas, Beatriz Nascimento, Rivelino, interrompidas por cortes dolorosos, mais na carne do que no filme – a lembrança da luta por civilização, brutal e sem trégua, dos Sem Terra do Brasil, ou o desalento de Herzog enforcado. A doçura ridícula das cartas de amor soçobra, amargando o drama nacional.

E, fechando o filme, um clipe de toneladas de vulgaridades da indústria cultural, miséria e violência, fake news, messianismo, misturadas a flashes de brilho e dignidades ímpares de nossa sempre truncada formação – Zé Celso, Zico e Sócrates, Mãe Stella de Oxóssi e, de novo, a Constituinte de 1988. Tudo sob a trilha da desconcertante Pierrot Lunático, de Rômulo Fróes e Nuno Ramos, releitura da desconstrução tonal de Schönberg e do simbolismo de Albert Giraud. O chão sem o chão. A lua, que abre o filme, ressurge como um ponto final. O oco, o vazio, pura projeção de delírios, mais lunático do que lunar. O pierrô lírico, idiota pateta, entre o amor e a formação.

Se me estendo na apreciação dessa composição-desconstrução, dialetização que multiplica vias laterais, abismos e contradições violentas, rodeando e infiltrando meus parcos posts – cidadãos, amorosos e lunáticos –, o motivo está para além da implicação pessoal, que, aliás, se desfaz, se coletiviza em tom trágico no caleidoscópio histórico do filme. Trata-se de aprender com o método de Democracia e Amor, que segue se desdobrando, em outras versões durante a série. Como no poderoso terceiro episódio, dedicado à condição feminina, partindo de um post-relato de Daiane Novais sobre o desespero de uma mulher que precisa obter com urgência uma injeção anticoncepcional, para escapar da opção sem opção, entre mais uma gravidez – seria a sétima, aos 28 anos – ou a agressão do marido, que exige sexo dela. De novo, no contraponto das imagens e do texto, de solidariedade e tragédia, cotidiana e histórica, dialetizam-se belezas e brutalidades, da vida, da morte e das artes das mulheres do Brasil.

A série Democracia e amor ainda está em curso. Sabe-se lá o que vem por aí. O que dá para esperar é que a dupla Rewald & Ab’Sáber siga seu trabalho feito sem grana, na contramão da grana, atrapalhando o tráfego de alta velocidade e baixa intensidade – de inteligência e experiência – que domina a internet colonizada pelo maquinário da indústria cultural. Mergulhando as mãos na lama e no caos cotidiano, revelando, oculto sob o gelo fino e sem atrito deste fluxo constante, presenças de violências fundantes, e também promessas de invenção civilizatória. Tudo móvel e incerto, contra as certezas imobilistas dos falsos movimentos. Sem centro fixo, projetando-se na face duvidosa da lua, vista da sarjeta.

 

Leandro Saraiva é crítico de cinema e roteirista, professor do curso de Imagem e Som da UFSCar.


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