Registro civil, uma vitória trans no STF

Registro civil, uma vitória trans no STF
Direito a registro civil sem necessidade de cirurgia foi concedido nesta quinta (1) pelo STF (Arte Revista CULT)

 

Nesta quinta (1º), o Supremo Tribunal Federal realizou um julgamento histórico para a concretização dos direitos humanos no Brasil: por unanimidade, os Ministros entenderam que a mudança de nome e de sexo nos documentos de pessoas trans não exigem cirurgia de redesignação sexual. Além disso, por maioria, decidiram que não são necessários laudos médicos ou psicológicos e que esse procedimento de alteração no registro civil pode ser diretamente feito perante os cartórios.

Dentro da ampla e diversa comunidade imaginária LGBT, certamente as pessoas trans compõem o segmento mais invisibilizado e desprotegido dessa “sopa de letrinhas”. Diversos são os efeitos e impactos desta decisão na vida de pessoas trans e no modo como compreendemos, cultural e socialmente, as transgeneridades.

Primeiro, porque a decisão garante o direito à identidade de gênero tanto para travestis como transexuais, pois optou-se por ampliar o rol de beneficiários do julgamento utilizando o termo “transgêneros”, menos usual na língua portuguesa, mas mais abrangente que os demais.

Segundo, a decisão, tomada por nosso órgão de cúpula do Judiciário, vai acabar com a profusão de sentenças e acórdãos conflitantes entre si que eram proferidos, diariamente, nas instâncias judiciais inferiores. A verdadeira loteria judicial que dependia das convicções pessoais, formação cultural, boa vontade e valores morais dos juízes deve acabar em breve, pois o precedente do STF desempenhará um papel fundamental para uniformizar a jurisprudência sobre o tema.

Em terceiro lugar, vale frisar que a decisão representa um passo significativo no processo – ainda incipiente –  de despatologização das identidades trans. Sabe-se que uma das formas mais eficazes e recorrentes de estigmatizar e inferiorizar um grupo social vulnerável é classificar seus membros como “anormais”, “degenerados”, “perversos” ou “doentes”.

Nesse sentido, discursos médicos, criminológicos e legais cumpriram, historicamente e durante séculos, essa função de patologizar, sob o manto positivista aparentemente neutro e legítimo das “ciências”, as sexualidades e identidades dissidentes do padrão hétero e cisnormativo. Essa patologização é, ao lado dos julgamentos morais de cunho religioso, o maior substrato ideológico e cultural que resultou em uma representação negativa de qualquer diferença sexual ou de gênero nas sociedades ocidentais modernas.

As homossexualidades já vinham em processo de progressiva despatologização em diferentes partes do mundo desde a emergência do movimento LGBT no período pós-Stonewall até o posicionamento oficial da Organização Mundial da Saúde em 1993. Aliás, uma das principais lutas do início do movimento foi, justamente, reivindicar o fim da patologização e a plena aceitação contra tratamentos médicos e psicológicos compulsórios.

No entanto, as transexualidades não foram despatologizadas junto com as homossexualidades. Pessoas transexuais ainda vinham sendo, no Brasil, submetidas a constrangimentos diversos por não poderem mudar seus registros civis se não se submetessem a cirurgias caras, a avaliações médicas periódicas e a um Judiciário demorado e pouco eficiente. Assim, os juízes, médicos, assistentes sociais e psicólogos eram as “autoridades competentes” para ditar a identidade de gênero de uma pessoa trans. Importava, de verdade, a opinião de todo mundo, inclusive daqueles que vendiam laudos, menos da própria pessoa interessada.

Isso vai mudar. Porque, a partir de agora, a própria pessoa poderá firmar declaração, que ficará arquivada em cartório para a realização da mudança. Em outros termos, a decisão desburocratiza significativamente o procedimento da retificação, retirando da esfera impositiva do Judiciário, com todos seus ritos e prazos, para os cartórios de registro, que são muito mais acessíveis e ágeis na tramitação dos requerimentos.

A possibilidade de escapar do processo judicial para buscar o direito na via administrativa é um progresso fundamental que aproxima a regulamentação do direito à identidade de gênero aos padrões internacionais mais avançados, replicando, em grande medida, o que já constava no Projeto de Lei João Nery, que pouquíssimas chances teria de ser aprovado no Legislativo conservador que está aí.

Deve-se destacar também que a decisão adota em alta conta, na fundamentação de diversos dos votos, a Opinião Consultiva 24 de 2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, segundo a qual os direitos LGBTs devem ser garantidos sem qualquer traço de patologização – como a exigência de laudos médicos ou psicológicos. Trata-se, assim, de um caso de porosidade rara do STF ao direito interamericano dos direitos humanos, que deve ser celebrada.

É evidente que ainda demorará algum tempo para que se cumpra a decisão em sua integralidade e em todo o território brasileiro. O acórdão do STF ainda será redigido e devidamente publicado, gerando, a partir daí, todos seus efeitos legais. Além disso, as entidades representativas do movimento LGBT já declararam que oficiarão o Conselho Nacional de Justiça para que este regulamente o tema com diretrizes para todos os cartórios, evitando que alguns destes se recusem a proceder à alteração. Mais ou menos como ocorreu quando, em 2011, o STF reconheceu a legalidade das uniões homoafetivas e, somente em 2013, o CNJ editou uma resolução obrigando os cartórios a fazerem o registro. Ou seja, haverá ainda algum tempo, esperamos que bastante curto, para que a decisão se converta em práticas institucionais e culturais na burocracia brasileira.

Além disso, é bastante sintomático que tal avanço em direitos sexuais no Brasil tenham advindo, justamente, de um Poder Judiciário bastante conservador em diversas outras agendas políticas, econômicas e culturais. Ainda que se trate de um poder de Estado com vocação contra majoritária e certa missão “iluminista” de fazer avançar a roda da história, como gosta de afirmar um de seus ministros, devemos aproveitar para refletir sobre as razões que tornaram nosso sistema político, especialmente o Legislativo, tão insensível e refratário às discussões sobre diversidades.

Até mesmo para termos clareza de que é necessária uma vigília cotidiana e atenta aos direitos conquistados, sobretudo em momentos de retrocessos como o que vivemos atualmente. A luta pela aprovação da lei de identidade de gênero é fundamental e ainda necessária, pois uma decisão judicial, mesmo que de uma Corte Suprema, é mais fluída e instável do que uma lei em sentido formal aprovada pelo Parlamento e sancionada pelo Executivo.

Ou seja, temos agora motivo de sobra pra comemorar e muito uma conquista tão significativa no país que mais mata pessoas trans no mundo e em um momento de reação conservadora tão intensa. Mas, pela lucidez que precisamos cultivar, também temos motivo de sobra para seguirmos firme, lutando até alcançar plena igualdade e cidadania de todas as pessoas LGBT.

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