Reflexões em tempos de cegueira

Reflexões em tempos de cegueira
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Nesses dias de quarentena em decorrência da famigerada pandemia pelo coronavírus, lembrei-me por demais do livro/filme de Saramago, Ensaio sobre a cegueira, no qual ele conta a história de uma cegueira repentina que toma de conta de uma cidade. Quem teve a oportunidade de ler ou assistir ao filme, lembrará quão angustiante é todo o enredo.

Mas, pensando cá no que estamos atravessando, por quantas anda a nossa própria cegueira? Uma das nobres funções do lugar de um psicanalista é abrir, cavar discussões. Sim, esse momento histórico em que estamos e que nos fez parar, ficar em casa (forçadamente), fez-nos também parar em “nossa casa interna”, parar em nós. Talvez para nos dar conta de que, como disse Freud, o Eu não é senhor na sua própria casa.

Tive a impressão, esses dias, de ter estado “cega” algumas vezes. Noutras, enxergando bastante. Não sei, mas me indaguei quantas cegueiras temos diariamente, mesmo de olhos abertos.

O coronavírus, como no livro de Saramago, nos fez parar e nos fechar em casa e, quem sabe, a partir disso, consigamos olhar um pouco para dentro de nós (para essa casa que muitas vezes não compreendemos). Quem sabe assim perceberemos em que residia nossa cegueira nos últimos tempos. Claro que isso é algo muito subjetivo! Mas, talvez, possamos resgatar algo em nós mesmos, algo que se perdeu num outro: trabalho, estudo, família, amizades… excessos. São infindáveis as possibilidades que poderia eleger aqui como um outro. Mas deixarei a cargo do leitor pensar qual era/é a sua cegueira, pensar em algo que estava/está adormecido, perdido e precisando de você.

Cuidar de nós! É pedido, no momento, para nos isolarmos, por cuidado ao outro. É interessante e faz pensar que, nos últimos tempos, o que era dito por muitos é que vivíamos na cultura da individualidade, cada vez mais isolados, distantes e ao mesmo tempo conectados à internet, sem tempo para estarmos juntos etc. De repente, a solução é nos afastarmos uns dos outros. Afinal, vivíamos juntos ou afastados? Quem sabe dizer?

O que a reclusão social despertou ou irá despertar em cada um de nós? Com o que estamos nos deparando psiquicamente nesses “desencontros” impostos por um vírus desprezível muito potente nos seus efeitos?

O mundo se transforma o tempo todo, sabemos! O que ficará infundido em cada sujeito após todo esse tempo pandêmico de instabilidade? Há um tempo antes e um tempo depois. Há um mundo antes e um outro depois.
Faço aqui um recorte de um texto de Drummond que diz: “Onde nasci, morri. Onde morri, existo. E das peles que visto muitas há que não vi.”

Morrer para existir e descobrir o que há de desconhecido em nós, nas muitas capas que se transformam em nossa existência e que faz balanços ao nosso desejo. Desejo este que pode nos fazer viver e, portanto, existir!

Morrer para existir! Mas o que morrerá para que possa existir: desejos em existir e persistir? Esse será um jogo psíquico único em cada sujeito, nas apostas da própria vida e que será negociado psiquicamente e decidido subjetivamente. E o mundo, será que vai acabar?

O que restará do que ficou antes da quarentena, de um vírus que nos provou que não somos, nem de longe, quem pensávamos ser e que nos colocou reféns do seu poder? O corpo psíquico não está de fora dessas questões.

Uma das funções do psicanalista é a de fazer trilhas para questões. Quem se arriscar a caminhar por elas, também pagará o preço de abrir os olhos para não cegar, sabendo que terá que lidar com suas experiências subjetivas desejosas, únicas e de olhos abertos.

Maria Luzia Porto Noleto de Souza é psicanalista

 

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