Rede na varanda

Rede na varanda
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Nunca havia tentado a rede na varanda, não sei dizer ao certo por quê. Dizia a mim mesma que não tinha tempo para o ócio, que lá fora é quente, que não tenho privacidade com tantos blocos de apartamento ao redor de minha modesta varanda. Ali me servia tão somente para deixar estar minhas plantas, a horta caseira, e o varal de chão, com minhas roupas estendidas. O sofá da sala sempre me agradou mais.

Agora deitada, com a janela aberta, observo as folhas do meu lírio da paz, também embaladas pelo vento da varanda. Meu lírio está em luta pela vida, já há algum tempo, desde que adquiriu não sei que espécie de praga que lhe deixa as folhas repletas de pontinhos brancos. Acreditando serem fungos, busco um veneno específico e banho-lhe as folhas semanalmente, deixo-o ao sol por algum tempo. O lírio reage breve e solene, ergue-se, mas logo depois reaparece seco, com as pontas das folhas queimadas, mais um galho escurece, se retorce. Corto-lhe as ramas sem vida. Cuido e converso, como se meu próprio filho fosse. Permanece ali, ornando a varanda, ainda que em luta. Ora está ressequido e encurvado rumo ao chão, ora me arranca sorriso cálido e esperançoso quando amanhece altivo, com folhas erguidas e viçosas. Ele luta. Há de beber, em minha rotina matinal, incluo nossa água filtrada, mato minha sede e a dele. Banho suas folhas, uma a uma, novamente como quem lava o filho num banho tépido.

Venho a escrever na sala, ainda assim posso vê-lo tímido e ensimesmado, um tanto longe das outras plantas. Ensaio a rede, novamente. Por que nunca deitei nesta rede tão convidativa? Esta novamente quer a rede. Deito-me, um tanto desajeitada, tento encontrar aconchego naquele tecido pendurado que abarca o corpo. O corpo procura uma posição que lhe acolha. Sinto o calor, o vento cessa, observo o silêncio ao meu redor. Os olhos circulam, longe agora da tela luminosa do celular. É bom, tomo gosto, sinto a boca salivar, respiro fundo, fecho os olhos. Sinto prazer. Tenho consciência que meu prazer é fugaz, logo as mídias eletrônicas me alcançarão com sua ostensiva realidade. O celular, ao chão, agora é parte amputada de meu braço. Minha existência tem solidez. O calor me envolve, a rede-aconchego me abraça. O vento chega e me afaga o corpo estirado, sinto-me mais à vontade e até chego a acreditar que já estive ali antes. A rede agora é minha, tomo posse. A pequena cadela chega, minha companheira peluda e silenciosa, escolhe dividir a cena comigo. Jazemos deitadas, inertes, tácitas. Nada se move, nada se fala. As crianças barulhentas de outrora se foram. A água da piscina é azul e transparente, como jamais se viu. O silêncio grita em nossas janelas e varandas abertas. Meu vizinho de longos cabelos grisalhos, amarrados num rabo de cavalo, ensaia seu repertório musical. Por que eu nunca falei com ele antes? Imagino-o aparecendo na varanda e conversamos, os dois, sobre ser músico nesta grande cidade provinciana. A vida é bela… Balanço a rede e as fantasias. Cochilo um tanto, com meus fantasmas. O lírio declara guerra. Declaro paz. O mundo segue em quarentena.

 

Lorene Gualda, 34, é natural de São Paulo – SP, mas mora em Fortaleza há 4 anos. Atua como psicóloga e psicanalista. É também vocalista da banda Rock Movie. Leitora voraz, amante das letras, aprendiz de escritora.

 

 

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