Quem tem medo de Anitta?

Quem tem medo de Anitta?
Cena do clipe “Envolver”

 

No dia 25 de março, a cantora brasileira Anitta conquistou o primeiro lugar no ranking das músicas mais ouvidas do mundo com a faixa “Envolver”. Tanto a música como o videoclipe revelam a superprodução e a performance marcante da cantora. Um acontecimento fiel ao nome da música: ela envolveu boa parte dos frequentadores das redes sociais e do aplicativo Spotify.

Mas não foi só isso o que Anitta causou… Provocando e afetando os corpos do mundo todo, de gente que topou o desafio de dançar e rebolar tal qual a cantora, ela atiçou também a crítica de uma certa intelectualidade brasileira de plantão. Enquanto alguns celebraram o feito ressaltando a trajetória da artista e sua capacidade de engajar e encantar deus e o mundo – a despeito de uma série de entraves estruturais decorrentes da injustiça inerente à sociedade brasileira –, outros resolveram aplainar e até mesmo tentar apagar o destaque mundial de Anitta.

As vozes destoantes de “Envolver” foram embaladas sob inspiração de uma crítica ao capitalismo e sua consequente degradação dos valores humanos. Mas, é preciso lembrar: para se fazer a crítica da produção, propaganda e consumo de objetos transformados em mercadoria, assim como dos processos intrínsecos à dinâmica do capital, tais como a objetificação dos sujeitos e das relações sociais ou fetichização, não é preciso ir buscar tão longe… Até o topo de um ranking nunca antes ocupado por um/a artista brasileiro/a.

E se assim o faz, tomando-a como um objeto privilegiado para maldizer os efeitos do mercado global sobre a arte, é por que há algo mais nisso tudo… A crítica preocupada com os efeitos da máquina capitalista sobre o corpo exposto da cantora também chama a atenção para algo que ela faz explodir: seu erotismo.

Sim, de uma forma sub-reptícia, há uma certa visão de como o corpo dessa mulher que sabe cantar e dançar como poucos poderia melhor se proteger – e proteger os outros – das garras de uma máquina destinada a promover um processo implacável de subjugação. Esses que temem Anitta, porque temem o sexo e a potência erótica que fazem caducar até mesmo a inteligibilidade e a compreensão que têm do mundo, pegam carona na velha cantilena de uma teoria que se acredita apta a identificar – e daí mitigar – as forças que irradiam do corpo da mulher.

E para tanto se apresentam como “pensadores” aferrados aos mais caros princípios analíticos, que falam como representantes únicos capazes de identificar o funcionamento estrutural do modo de ser social. Estaríamos mais uma vez diante da cena em que o filósofo alemão Theodor W. Adorno, no final da década de 1960, é confrontado por um grupo de estudantes com os seios à mostra (o chamado “atentado dos seios”)? Por que Maio de 68 ainda insiste em não terminar?

É verdade que transpor simplesmente o quadro histórico do século passado e as posições ocupadas pelos diferentes atores daquele cenário para o momento presente seria um equívoco. A liberação sexual reivindicada pelos jovens e estudantes da época foram superadas em diversos sentidos, com avanços em algumas áreas e outras nem tanto, assim como as posições conservadoras mais explícitas deixaram de ocupar um terreno hegemônico para ressurgir na atualidade no âmbito de um ideário político-cultural de extrema direita.

No entanto, permanece o gesto de exclusão do erotismo dos corpos operado nos mais distintos cenários, à direita e à esquerda. A prova disso é que, ainda que o erotismo apresentado pela cantora brasileira não tenha o ar de novidade que caracterizou aquele movimento histórico, a reação permanece. Ou então, em termos psicanalíticos: mudam-se as representações, permanece o mecanismo do recalque.

É preciso dizer, ainda, que a crítica que reduz o “acontecimento” Anitta a quase nada presta serviços, sem o saber, ao poder que produz a subjetividade do indivíduo assujeitado e docilizado das sociedades contemporâneas. Não se discute aqui o fato de que estamos diante de um produto fabricado nos mínimos detalhes com o objetivo de alcançar o sucesso de vendas no mercado global. Isso é evidente.

Ao mesmo tempo, não podemos pensar a questão a partir de uma oposição estanque entre a colonização dos sujeitos pelo mercado versus a essência libertária da obra de arte. Estamos desde sempre num campo dinâmico em que as forças se articulam umas sobre as outras orientando diferentes modos de ação.

Nesse sentido, abro um pequeno parêntese, talvez dois: no “Prefácio à transgressão”, texto escrito em 1963 em homenagem ao filósofo e escritor francês Georges Bataille, Foucault se apropria do tema da transgressão, tão caro à Bataille, para pensar na possibilidade de uma ontologia crítica capaz de mapear os acontecimentos que violam, revelam e abolem os limites do ser. Frente a tais acontecimentos, conseguiríamos escapar dos insidiosos dispositivos de identificação, normalização e classificação operados por dispositivos de poder espraiados no corpo social? E por que não pagar pra ver?

O poder, para Michel Foucault, é puro exercício ou conjunto de práticas e estratégias destinadas a produzir determinadas formas ou modos de subjetivação. Através desses dispositivos, a relação dos sujeitos consigo mesmos, seus corpos, são atravessados em seus micro-poros, determinando desde o estilo de vida até as vinculações identitárias, as crenças e higienes corporais. O certo é que, para Foucault, sejamos capitalistas ou não, haveríamos de enfrentar esses modos de articulação e composição de forças que incidem sobre a nossa subjetividade.

Acontece que a resistência se constitui como o interlocutor irredutível do poder. Daí que toda retomada ou liberação possível deve passar por um contato e enfrentamento muito próximos daquelas práticas que atuam num determinado regime de imposição de modos de subjetivação. Assim, o “outro do poder”, sua resistência, constitui-se onde menos se espera e a partir da matéria mesma onde atua o poder, ou seja, os próprios corpos e sua dinâmica de re-produção.

A resistência aos efeitos devastadores do capitalismo sobre as subjetividades não virá de outro mundo, de uma visada sobre o mundo que escamoteia sua própria implicação nas relações de poder, mas da conversão e reversão de seus modos de funcionamento no sentido de novas práticas individuais e coletivas. Lembremos que o “erotismo dos corpos”, para Bataille, é um desses registros existenciais em que o limite se compõe com a transgressão num gesto continuo de ultrapassagem e retomada de contornos limitantes. Neste movimento em espiral, vale dizer, muitas vezes o preço pago pelo sujeito é o seu despedaçamento. Qualquer olhar sobre os efeitos provocados por Anitta deve estar atento para essa força erótica capaz de provocar fissuras no mais engessado dos corpos.

Tudo isso para dizer que a patrulha moral, que diz o que/como devo proceder com o meu próprio corpo, persegue o rebolado de Anitta travestindo-se de crítica à pasteurização da obra de arte. E o pior: nas entrelinhas é possível escutar algo como um aviso que diz, “isso não vale nada, mas tomem cuidado”.

Acontece que o sexo se constitui numa potência capaz de resistir aos efeitos limitantes de um poder que não veste uma cor ideológica específica. É desse lugar intangível do sexo, de seu poder disruptivo (potência descoberta pela psicanálise freudiana e confirmada a todo instante na clínica psicanalítica), que a resistência deve fazer valer sua força de liberação. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a artista se constitui enquanto sujeito de um corpo posto à prova nos jogos eróticos, outros corpos, quaisquer que sejam, velhos, jovens, pobres, ricos, feios e bonitos… ressoam a música e fazem valer todo o poder de seu rebolado.

 

João Paulo Ayub Fonseca é psicanalista e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp com tese intitulada “Arte é sangue, é carne – a riqueza e a miséria da palavra no romance de Graciliano Ramos”. Autor de Introdução à analítica do poder de Michel Foucault (Intermeios, 2015).


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