Quem tem medo da forma dramática?

Quem tem medo da forma dramática?

Zezé Polessa e Daniel Dantas em “Quem tem medo de Virginia Woolf?” (Foto: João Caldas)

Welington Andrade

Embora boa parte da criação teatral mais inquieta e vibrante dos dias de hoje esteja assentada sobre a condução de experiências dispostas a investigar as chamadas formas pós-dramáticas – que diluem, esgarçam ou abolem por completo as categorias de ação, fábula e personagem –, não se pode negar a grande capacidade que um bom drama ainda tem de revolver o terreno da cultura contemporânea, penetrando fundo em camadas que urgem ser atingidas e exercendo sobre o espírito do espectador um fascinante poder de atração.

A montagem de Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee, com Zezé Polessa, Daniel Dantas, Erom Cordeiro e Ana Kutner, dirigida por Victor Garcia Peralta – em cartaz até o final de julho no Teatro Raul Cortez – dá provas mais do que suficientes de que o drama moderno (que atravessou o século XX assumindo as mais variadas configurações temáticas e estilísticas) ainda goza de uma força crítica e de um potencial de comunicação inestimáveis, que talvez exijam a prontidão de um público menos afeito a certas zonas de conforto – sejam elas propostas pelos mais previsíveis dos conservadorismos ou pelas mais radicais das iconoclastias.

O drama moderno atinge o auge de sua contundência expressiva quando rompe com o ilusionismo das convenções realistas e investe toda sua força em dois eixos estruturais: primeiramente, apostando na ideia de que a fábula, antes de constituir a imitação pura e simples de uma realidade extrateatral, pode se apresentar aos olhos do espectador como um jogo, que convida à reflexão por meio das potentes analogias, metáforas e símiles que propõe; em segundo lugar, explorando às últimas consequências a ambiguidade da linguagem verbal – essa instituição paradoxal que nos aparta da vida selvagem e ao mesmo tempo nos faz retornar a ela, quando usada para disfarçar nosso mais intrínseco quinhão de humanidade.

Escrita em 1962, Quem tem medo de Virginia Woolf? retrata uma lancinante noite vivida por um casal norte-americano de classe média – George e Martha, juntos há vinte anos – na companhia dos recém-casados Nick e Honey. George é um professor de história que dá aulas na instituição de ensino superior cujo reitor é o pai de Martha, uma mulher geniosa e mimada. O casal mora no campus da universidade, e tudo leva a crer que George, não muito bem sucedido em sua trajetória acadêmica, vive sob a zona de influência do sogro. Nick é um jovem e promissor professor de biologia que acabou de ingressar na mesma instituição e que, por essa razão, ainda está deslocado no ambiente. Casado recentemente com Honey, Nick não esconde sua ambição de vencer na vida, objetivo para o qual a fortuna acumulada pelo pai de sua insegura e vulnerável esposa talvez seja de suma importância. Atendendo a um pedido do pai, Martha convida o jovem casal para uma visita tarde da noite, depois de uma festa na casa do reitor. Contrariado, George abre a porta e os recebe. A partir desse momento, os quatro personagens, tendo generosas doses de álcool por álibi e salvo-conduto, se lançam a uma impiedosa experiência de convívio, que faz surgir toda sorte de revelações, suspeitas, dissimulações e hostilidades.

Incisiva representante da literatura dramática norte-americana, e do repertório do teatro ocidental, Quem tem medo de Virginia Woolf? propõe ao espectador muitas nuances emocionais e um intrincado jogo de revelações e ocultamentos de sentidos, exigindo a sagacidade de intérpretes muito tarimbados, plenamente aptos a enfrentar com verve e ousadia a atmosfera de ironia e sarcasmo que exala desse espécime teatral ímpar. O título da peça faz alusão tanto à paródia da canção infantil “Quem tem medo do lobo mau?”, ouvida pelos quatro personagens na festa na casa do reitor, quanto à figura da escritora inglesa cuja obra radiografou, lírica e melancolicamente, um mundo de valores destruídos. Em sua preciosa História da literatura ocidental, Otto Maria Carpeaux assim apresenta a inspirada autora de Orlando e de Mrs. Dalloway:  “Virginia Woolf, no seu círculo de intelectuais sofisticados, dos ‘high brow’ do bairro londrino de Bloomsbury, fez parte da primeira Intelligentzia que surgiu na Inglaterra conservadora imediatamente depois do armistício, com o enfraquecimento da moral puritana, a discussão pública de problemas sexuais, a adoção de novos costumes pela mocidade; o que se chamava ‘época do jazz’ ou do fox-trot. Os franceses falavam de ‘Après-guerre’; os ingleses, mais tarde, deram à época o apelido de “Waste Land”, conforme o título do famoso poema de T.S. Eliot”.

Desejando investigar os resquícios da influência do intelectualismo aristocrático inglês (do qual Virginia Woolf é uma dileta representante) sobre a inteligência pragmática norte-americana, armando um aflitivo quebra-cabeças em torno da figura de um filho ausente e vislumbrando a realidade como uma estrutura disposta em arabesco, Edward Albee concebeu uma obra demolidora, que, entretanto, não propõe a abolição pura e simples de uma série de valores e instituições, como o casamento, a família, a maternidade, a carreira profissional e a vida intelectual. Antes, o dramaturgo prefere tratá-los como inescapáveis paradoxos da vida burguesa. Ao homenagear em chave paródica a musa daquele círculo de intelectuais sofisticados das décadas de 1920 e 1930 (uma verdadeira alcateia de lobos maus que se compraziam em assustar os últimos remanescentes da era vitoriana), Albee dirigiu seu ceticismo contra a igualmente puritana e conservadora sociedade norte-americana do início dos anos 1960, retratando um campus universitário como uma terra arrasada. O clima de terrorismo de que se reveste toda a empreitada está aqui, naturalmente, encoberto por uma fina camada de humor, ora requintado, espirituoso; ora grosseiro, vulgar, mas cortejando todo o tempo aquela comicidade nonsense de que os autores de língua inglesa são verdadeiros mestres. A peça transforma o vazio da vida intelectual, o vazio da figura de um filho e o vazio das relações humanas em combustíveis para ações e discursos que, embora cheios de vivacidade e energia, mal conseguem disfarçar sua única finalidade: a tentativa desesperada de converter não-sentidos em sentidos. Há uma profunda ligação entre o vazio semântico e o vazio da existência. A nós, espectadores, resta torcer para que Lobo Mau nenhum venha soprar contra a casa segura onde residimos com nossas dignidades e com nossas convenções.

Grande parte do sucesso da montagem ora em cartaz se deve ao talento da dupla de atores que encarna o casal Martha e George. Zezé Polessa e Daniel Dantas imprimem aos seus personagens um tipo de humor rascante muito genuíno, que tem marcado suas carreiras, aliás. Vale ressaltar que o risco da montagem seria a tentativa de reprodução de um padrão importado de comicidade, que poderia soar pedante e inadequado. Mas ambos os intérpretes evitam a armadilha. Zezé Polessa constrói sua Martha com doses muito bem calibradas de malícia, sarcasmo e pilhéria, transitando entre o registro irônico que a peça pede e as possibilidades que lhe dá um humor à brasileira. Bastante conhecida por sua aptidão natural para a comédia, a atriz se lança aos momentos mais dramáticos da trama com uma intensidade luminosa. Trata-se de uma grande intérprete em pleno domínio técnico e emocional de uma personagem tão ricamente matizada. E Daniel Dantas não fica atrás, dotando o George a que ele dá vida de um vertiginoso ritmo cômico calcado em contenção de gestos físicos, mas abundante uso da palavra. O humor espirituoso expresso pela língua inglesa exige a inventividade e o rigor técnico de um ator que consiga converter a todo momento cada palavra proferida em um pequeno ato performático – tarefa da qual Daniel se desincumbe com espantosa naturalidade.

Convém destacar também a presença dos excelentes intérpretes que encarnam o casal Nick e Honey, personagens que funcionam como duplos invertidos dos protagonistas. Erom Cordeiro empresta a Nick a necessária aura de segurança e vaidade discretas, temperadas por uma dose de charme e de masculinidade que George, por exemplo, não tem. Fazendo uso bastante expressivo de corpo e voz, o ator se sai muito bem no alucinante jogo que a relação com os personagens defendidos por Zezé e Daniel exige. Já Ana Kutner constrói Honey com uma dose de fragilidade muito convincente. Sem soar caricatural, ela procura as inflexões de voz e os gestos corporais mais patéticos a fim de caracterizar a jovem mulher que, parece, irá perder o autocontrole a qualquer momento.

O trabalho do diretor Victor Garcia Peralta assemelha-se bastante ao do regente de orquestra a quem compete, ainda que diante de músicos muito afinados, manter o ritmo vibrante e envolvente do começo ao fim da execução. A direção de arte e a cenografia de Gringo Cardia são inventivas e funcionais na medida certa, servindo ao jogo dos atores e à atmosfera geral. Igualmente expressiva, pontual e precisa é a luz de Maneco Quinderé. Por fim, não se pode esquecer do diligente trabalho de tradução empreendido por João Polessa Dantas, que faz o texto de Albee soar tão bem em português.

Relegadas ao quase esquecimento em nossos palcos, as peças calcadas em diálogos agudos, afiados, penetrantes podem servir nos dias atuais como uma espécie de antídoto contra a falta de inteligência que grassa no mundo da linguagem. (Nunca falamos – e escrevemos – tantas coisas obtusas, opacas, desinteressantes… E podem advertir também contra a tendência que temos hoje de monologar e não propriamente de dialogar. (Nunca escutamos tão pouco o que os outros de fato têm a dizer). A rigor, nossa sociedade vai abandonando paulatinamente a era da palavra polida e das interações dialógicas. Ironicamente, entretanto, não há motivo para nostalgia. As regras de conversação – sobre as quais Albee construiu sua obra-prima – sempre funcionaram como paradoxos da relação entre civilização e barbárie. Ao final dessa “longa jornada palavra adentro”, o público se sente nocauteado por uma profusão de diálogos que não somente desmascaram as imposturas do altruísmo e da crença na convivência humana como também comunicam duas verdades inquietantes: em primeiro lugar, a inteligência é uma virtude absolutamente solitária; em segundo, uma palavra lapidada pelo cinzel das civilidades mais convencionais pode gerar a mesma violência que ela, por princípio, estaria destinada a estancar.

Quem tem medo de Virginia Woolf?
Onde: Teatro Raul Cortez – Rua Doutor Plínio Barreto, 285 – Bela Vista – São Paulo – SP
Quando: Sextas, às 21h30; sábados, às21h; domingo, às 18h.
Quanto: R$ 60,00 às sextas,  R$ 90,00 aos sábado e domingos
Info: (11) 3254-1700

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