Quebra-cabeça

Quebra-cabeça

por Marília Kodic

Um filme carioca que não trata de favela, tráfico nem corrupção, 180º usa a trivial fórmula do triângulo amoroso, mas tem uma trama complexa: sua narrativa não cronológica leva os espectadores a mudar de opinião diversas vezes até a cena final.

Ganhador de Melhor Filme pelo júri popular do Festival de Gramado de 2010 e com Eduardo Moscovis e Malu Galli no elenco, é o longa-metragem de estreia do diretor Eduardo Vaisman: “Só eu sei que o filme se passa ao longo de oito anos, mas o que importa é a dimensão temporal. Costumo dizer que o filme é um quebra-cabeça, um enigma, em que damos quase todas as peças, mas quem forma as últimas é o espectador”, diz ele por telefone à CULT. A estreia está prevista para 16 de setembro.

Além disso, duas mostras ocorrem durante o mês: Cinema em Carne Viva – David Cronenberg, retrospectiva com 18 longas do cineasta canadense, além de conferências e curso sobre a obra do autor, de 21 a 30/9, no CCBB-SP (tel. 11 3113-3651); e Wim Wenders – Imagens que Obedecem, com 17 títulos de um dos principais autores do cinema novo alemão, de 6 a 21/9, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba (caixacultural.com.br).

Confira abaixo a entrevista do diretor de 180 à CULT.

CULT – Você teve a intenção de que cada espectador saísse do filme com uma conclusão diferente? Por quê?

Eduardo Vaisman – Sim, um dos objetivos era exatamente este. Costumo dizer que o filme é um quebra-cabeça, um enigma, em que damos quase todas as peças, mas quem forma essas últimas é o espectador, e elas são fundamentais para a leitura que se faz dessa história. É muito engraçado porque cada espectador realmente faz uma leitura diferente e acompanha o filme sob um determinado ponto de vista.

Como se dá a passagem de tempo no filme?

A pessoa entende quase no final do filme que se passaram alguns anos na história. Um dos grandes desafios do filme era trabalhar em cima da sutileza – ninguém corta o cabelo, por exemplo. É impressionante como o Bernardo (Felipe Abib),  vai de um jovem estagiário até um editor de sucesso.

Com a Anna (Malu Galli), fizemos uma brincadeira com as unhas, que é extremamente sutil. Se você reparar, o filme começa com um plano em que ela dirige o carro e nós vemos muito bem suas unhas, que estão vermelhas, descascadas, que é uma hora de tensão. Em outros momentos, ela usa aquela unha mais branquinha, e isso tem a ver com os momentos dela.

Tem uma informação que só eu sei, que o filme se passa ao longo de oito anos, mas isso não tem importância, o que importa é a dimensão temporal. Da mesma maneira, eu também não queria uma fotografia diferente, que a passagem do tempo fosse anunciada pela montagem, que o passado fosse mais colorido e o presente preto-e-branco, ou vice-versa, ou que eu tivesse fades para o passado. Usamos cortes secos no filme, então vamos para o passado, o presente e o futuro sem anunciar.

Você acha que é um filme difícil de entender?

Não. Eu tinha muito medo de que ele não fosse compreensível. Esse filme já era escrito fora da ordem cronológica e, para trabalhar com os atores, usamos dois roteiros, um na ordem e um fora dela, porque era muito importante que não passássemos pistas falsas. Acabmos de filmar, montamos o filme como estava escrito, e algumas coisas não funcionaram. Então começamos a retrabalhar isso fora de ordem.

Eu sempre quis fazer um filme que se comunicasse com as pessoas, então queria que elas entendessem a história do filme, e que se sentissem curiosas em acompanhar o desenrolar dessa história.  Mexi uma peça de lugar, uma sequência de lugar…

Em uma das vezes, pegamos uma cena que estava quase lá no final, e experimentamos começar o filme com ela, e destruiu o filme. Foi a pior versão que teve.  Fomos experimentando ao longo do processo de montagem, e isso foi muito importante.

180º é a temperatura da evaporação total do sangue humano. Por que escolheu esse título?

Ele tinha outro nome, se chamava Livro dos Projetos, que é o nome do livro que eles escrevem no filme. Mas começamos a achar que filme com nome de livro ia confundir, dar ruído. Aí resolvemos mudar, pensamos em vários nomes, e chegamos no 180º, que tem várias leituras, e resolvemos trazer a discussão de alguma maneira para dentro do filme.

E tem algo nesse título que é o que me fez fechar com esse nome, e isso aparece só no final dos créditos: 180º é a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo, o que é algo totalmente pertinente a esse filme.

E como foi a escolha dos atores? Os três eram sua primeira opção?

A Malu Galli tem uma longa trajetória em teatro, tinha feito outros filmes, mas não como protagonista. A conheci há muitos anos, tinha feito um curta com ela, e quando vi o roteiro a primeira vez, logo pensei nela, pois ela podia dar a densidade que a Anna precisava e era capaz de fazer sem julgar a personagem, que talvez fosse o mais importante.

Para o Russel, queria um ator que não fosse óbvio para aquele papel. Temos ótimos atores nessa faixa etária que fazem esse tipo de papel no cinema brasileiro, mas eu queria que as pessoas se surpreendessem com o Russel. E aí eu me lembrei do Du [Moscovis], fui rever seus filmes, vê-lo no teatro, e mandei o roteiro. Foi engraçado pois ele quis me encontrar pra conversarmos, e a primeira coisa que ele falou foi: “O papel não é pra mim”. Aí eu falei: “Justamente por isso que eu quero que você faça esse papel!” (risos). Queria que ele trouxesse um outro olhar, e foi incrível. Ele vai num caminho de sutileza e de verdade de sentimentos sem exagerar.

Para a outra ponta do triângulo, que era um jovem ator, abrimos testes. Fiz vários, e quando vi o do Felipe [Abib], falei: “É ele”. Ele tinha uma coisa de falar rápido, de ser meio enrolado, meio atrapalhado, que me fez pensar: “É esse o Bernardo que quero”. Muito felizmente, foram as minhas primeiras escolhas.

Pode contar alguma coisa engraçada que aconteceu durante as filmagens?

Teve algo curioso na preparação. Eu queria muito trabalhar com os atores, é uma coisa que eu curto muito, não tive um preparador de elenco. Então desenvolvi uma estratégia em que, primeiro, trabalhei só com a Malu e o Dú porque, no filme, os dois personagens se conhecem antes, têm uma história. Trabalhamos um mês juntos – lemos, discutimos, conversamos, rimos, discordamos, tomamos vinho, foi ótimo.

E aí, eu queria tirar o Dú do processo nesse momento e, felizmente, ele tinha uma viagem marcada, foi passar um mês fora. Então comecei a trabalhar com o Abib e a Malu. Quando eles estavam super íntimos, eu trouxe o Dú de volta para bagunçar aquela história. Lembro direitinho, no final do primeiro ensaio quando o Dú voltou, o Abib falou: “Pô, tava tão tranqüilo só com a Malu, você veio aqui atrapalhar?” (risos).

Está trabalhando em algo novo?

 Tenho dois projetos novos. Um é o documentário O que aconteceu, em que vou reencontrar três moradores do Vidigal, que eram jovens em 2000, e que sonhavam em ser atores. Os filmei em 2000, eles tinham 16, 17 anos, fiz um curta chamado Dadá que rodou o mundo, e agora vou reencontrá-los pra saber o que aconteceu com suas vidas.

O outro projeto é a comédia Cadê o Severino?, que se passa inteiramente num prédio na Zona Sul do Rio de Janeiro durante uma semana em que o porteiro desaparece. Tem uma coisa de comédia surrealista, retrato da classe média.

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