Que vontade

Que  vontade

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de maio de 2021 é “desejo”


Que vontade de vinho, de ópio, de despirocar.

Que vontade de estar com alguém-Novos-Baianos, logo eu-Lana-Del-Rey, só pra papear.

Que vontade de ver a cidade do alto, de me perceber pequeno, que é pra desassoberbar.

Que vontade de fazer nada, tomando sol, ou melhor, sóis, porque faz tempo que não tomo, até me embriagar.

Que vontade de toda sorte de incerteza, de caminhar sem rumo, curtir a paisagem. E o que tiver de vir virá.

Que vontade de desapaixonar e apaixonar de novo, e assim renovar. Renovar a vida, que sem isso não é viver, é passar.

Que vontade de flertar despudorado, de ganhar um xêro, de ficar enroscado, de atravessar a noite inteira lasciva-carnal-etílica-visceral-suarenta, de ser atravessado, e depois tomar café da manhã, falando sei-lá-o-quê-Hilda-Hilst, e depois nos despedirmos sem termos nos apresentado.

Que vontade dos meus amigos e do nosso relacionamento aberto, que considero o mais perfeito, porque não cobra, mas entrega, doa desinteressado e livre. Some, volta, e é como se não tivesse ido, mas sempre tivesse estado, mesmo não estando. Porque quem tá com a gente sempre tá, pois o mundo inteiro cabe na gente e pode ser levado pra qualquer lugar.

Que vontade de não rotina, de ser surpreendido não com surpresa grande, mas com o detalhe pensado só pra eu perceber e decodificar o significado, que seria só seu-meu-nosso, e por isso guardado.

Que vontade de sair correndo pelado e de me tacar num caldo onde se misturam os não iguais.

Que vontade da seiva bruta, do natural, da terra, do primitivo, do néctar da carne, do sal, do desafio e dos carnavais.

Que vontade de mudar pro lugar onde o trabalho não se paga em dinheiro, mas em amores, histórias e luaus. Que vontade de mudar de cidade, de sexo, de corpo, de idade, de língua, de época, de presidente.

Que vontade de trair e de ser traído, de deslocar o sentido dessa ideia de posse que não fomos feitos pra ser, e de dizer é isso mesmo o amor, sem remorso, sem dor, apenas liberdade, leveza e fluxo.

Que vontade de me dissolver numa vastidão aberta, de não ver prédio, asfalto, fábrica, automóvel, pixel nem urbanidade, mas céu e mato. E que me julgue réu aquele que não se cansa de seus tantos papéis.

Que vontade de escapar das telas desse 1984 em que me botaram e eu não autorizei. Se for pra existir tela, que não seja a da vida que me programaram, mas a da vida que eu mesmo pintei.

 

 

Felipe Ferreira de Melo, 29, é jornalista especializado
em Português: língua e literatura e, atualmente,
trabalha como redator publicitário na cidade
de Uberlândia, Minas Gerais.

 

 

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