Quando eu olhei nos olhos dela

Quando eu olhei nos olhos dela
(Foto: Montvlov/Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de janeiro de 2021 é “perspectiva”.


Perspectiva daquilo que é visto. Como é visto.
Nossos olhares estão diretamente ligados às perspectivas, ao ponto que retém nossa atenção.
A perspectiva é a definidora de nosso entendimento.
Pessoas vista de longe, de perto.
Vistas por suas roupas.
Seus costumes.
Cultura e religião.
Vistas da perspectiva que cada um de nós escolhe para dar sentido ao próprio mundo.
A própria vida.
A seus olhares.

Não foi a primeira vez que olhei ela nos olhos. Já havíamos nos encontrado outras vezes. Porém, quando a conheci pela primeira vez, eu era ainda inocente demais e não reconhecei tão facilmente quando senti aquela presença estranha que, de várias maneiras, mexeu comigo.

Foi a primeira vez. Ao contrário do que muita gente pensa, ela não tem olhos escuros e sombrios. Ela tem olhos claros, azuis como as águas do oceano mais belo que existe. Serenidade de uma senhora de 80 anos, que carrega no olhar uma imensidão de sabedoria. Olhos penetrantes, impossível passar despercebido.

Na segunda vez, antes que ela chegasse eu já sabia que a veria em poucas horas. Lembro de pensar nela a todo instante e então, como eu havia imaginado, ela chegou mais uma vez. Sorrateiramente, veio e se transformou em descanso. Na verdade, nessas duas primeiras vezes, muitas pessoas a chamaram de “descanso”. Ela carrega vários apelidos.

Hoje, encontrei com ela novamente. Ela chegou, me cumprimentou, como se já fossemos velhas conhecidas, e veio fazer seu papel mais uma vez. Nesta tarde fria, ela não se transformou em descanso, ela foi surpresa, foi fatalidade. Ela veio muito cedo. Eu não pensei que fosse revê-la nesse momento.

Quando a morte vem nos visitar, nós nunca estamos esperando. É uma visita que ninguém quer. Não esperamos ansiosos, não passamos café e compramos bolo para servir. Não estamos preparados.

Mas a gente sabe, lá no fundo, que ela baterá em nossa porta. Vivemos tentando esquecer e fingindo que ela nunca vai chegar. Mas ela chega e, em pouco tempo, se transforma em uma velha conhecida.

Por mais triste que seja olhar novamente em seus olhos, dessa vez eu deixei que ela entrasse, eu dei o melhor lugar pra ela sentar. E tentei, finalmente, aprender com ela. Somente agora, eu aprendi o que ela vem, há anos, tentando me ensinar. Hoje, a morte me contou que a vida é um sopro. Que cada um de nós somos velas acesas e ela é brisa, que apaga a chama e já não podemos mais brilhar. Não aqui, não nesse plano de vida.

Somente hoje, a morte me mostrou que o tempo é curto demais. E que os encontros, que a gente tenta marcar com tanta gente, não devem esperar.

A morte também sussurrou pra mim que nada material importa nessa vida. Que se é mais rico quando se tem amor, amizade, beijos, abraços, carinho e afeto. Que carros, casas, dinheiro são apenas coisas demais. E o que é demais sempre sobra, sempre vai pro lixo, sempre será finito.

Hoje, a morte me ensinou que a vida é feita de momentos. Somente isso, momentos. As lembranças, por mais abstratas que possam parecer, são as únicas coisas mensuráveis em nossas vidas.

Entender que somos e nos definimos pela maneira como enxergamos as experiências e o mundo que está em nossa frente, nos permite entender a efemeridade de tudo que estamos vivenciando agora.

Olhar as perdas com uma perspectiva de aprendizado, nos deixa mais leves e nos dá também a certeza de que, assim como momentos felizes não são para sempre, os tristes não duram a eternidade. Afinal, o que é a eternidade se não um momento passageiro que se torna inesquecível?

Hoje, a morte me ensinou que ela apenas cumpre um papel. Que ela não é ruim, não é boa. Ela é necessária e que muita gente não compreende que ela vem justamente para nos fazer enxergar o que realmente faz sentido.

Hoje, a morte me ensinou a ver a vida de outra maneira. A ter pressa pra dizer te amo, a ter pressa para querer abraçar quem importa. A ter pressa pra perdoar e pedir perdão. A ter pressa pra amar e ser amada.

A morte não é o fim, ela é apenas parte da vida. Quem entende isso, também entende que ela jamais poderá tirar uma pessoa de nós. Porque assim como a morte, nós somos mais que matéria, nós transbordamos. E as pessoas que amamos não habitam somente um corpo, mas moram também (e pra sempre) dentro de nós!Arte Revista Cult

Juliana Spinardi, 30, é de Curitiba,
Paraná. É jornalista, apaixonada
pela literatura e fã número 1 de
Machado de Assis.

 

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