Privado: PROJETO PARA O PSICOMAPEAMENTO DE HAMLET – conto

Privado: PROJETO PARA O PSICOMAPEAMENTO DE HAMLET – conto

Projeto para o Psicomapeamento de Hamlet é um conto publicado na Revista http://www.antropositivo.blogspot.com.br/ Publico-o aqui também para os leitores desse blog. E sugiro que leiam a Antropositivo que é linda e cheia de conteúdos ótimos.

 

Caveira – 1996 grafite Marcia Tiburi

Fomos chamados para analisar os efeitos. Neste caso, tudo o que conseguimos saber diz respeito ao desejo de matar. Era assim que, antes da entrevista, ele se referia de maneira repetitiva e redundante a si mesmo e ao seu ato: o importante, o essencial, o fundamental, dizia como um disco quebrado, era o desejo de matar. Ouvimos tantas vezes até que, após a troca de olhares que garante o sucesso destes procedimentos, a decisão se tornou inevitável. Ele tinha que ser atingido pelas costas.

O projeto ao qual nos referimos pela sigla PPH é promovido internacionalmente por uma associação sem fins lucrativos. Nada nesse campo pode visar o capital, mesmo que este possa parecer o único interesse real. A intenção profunda dos procedimentos visa em seu plano mais tangível a melhoria das condições da vida em sociedade, mais ao fundo, sabemos que se espera algum tipo de progresso relativo à raça humana, por isso são escolhidos os que alegam ter visto o pai morto. Mas o aspecto programático e filosófico não é revelado àqueles que, como eu e meu parceiro, devem apenas executar uma parte da tarefa. Recebemos nosso pagamento modesto, às vezes em dinheiro, às vezes em mercadorias e não nos queixamos. Enquanto somos o que somos, não estamos no lugar dos candidatos.

Perguntei-lhe sobre a mãe, como ela era, se a amava. Com as mãos algemadas, ele ergueu os ombros recobrando a postura anterior à entrevista e bateu com a cabeça na parede em 3 séries de 5. Se tivéssemos pedido ou ordenado que o fizesse não teríamos o mesmo sucesso. As perguntas são feitas para desencadear ações que surgem das formas mais variadas sem que possamos fazer nada para contê-las. A intenção é de que a falta de controle abra espaço à melhor avaliação quanto à natureza do acontecimento. Pude perceber o motivo concreto que o moveu enquanto meu colega apenas fotografava a circunstância provavelmente esperando uma resposta miraculosa. Essa é nossa diferença fundamental, enquanto ele quer apenas o dinheiro no fim do dia, eu quero entender os procedimentos e contribuir com a melhor implementação dos processos.

Enquanto o candidato que se oferecera voluntariamente para o experimento ainda exercitava diante de nós o protótipo do desespero, o movimento em estado bruto não mais batendo a cabeça, mas girando sobre si mesmo, e eu me aprontava para avançar em mais um formulário, a porta foi aberta abruptamente e uma menina lançada violentamente ao chão da sala. Estava desacordada e com sinais visíveis de espancamento.

O procedimento padrão nestes casos é deixar que os voluntários acordem espontaneamente. Se isso não ocorre são recolhidos no final do dia e jogados na vala comum. Aos que ficam damos um nome: Hamlet 1, 2, 3 e assim sucessivamente. As meninas só recebem nome quando ficam vivas: Ophelia 1, 2, 3, mas não chegamos até agora nem a um milhar delas. Eu e meu colega estamos juntos desde o candidado 1212 da sessão 31614. Fomos promovidos duas vezes em função de méritos sobre os quais só tenho a dizer que não vi a participação de meu colega. São meus esforços, é a minha concentração, que permitem que avaliemos mais de 10 casos por dia. Mas isso não importa agora. Um dia ele estará no lugar dos voluntários, enquanto eu terei seguido em frente.

A entrada da menina é parte fundamental do projeto. É importante que chegue viva e em bom estado, mas nem sempre podemos contar com isso. Por economia, muitas são usadas em outros momentos do processo e nos chegam muitas vezes em situação mais precária do que aquela. Não foi fácil providenciar um método capaz de aproveitar todas as sobras. Com o que aplicamos há algum tempo, é verdade que já não importa tanto que nos chegue viva ou morta. A observação deve ser minuciosa e o mais descritiva possível mesmo quando se trata de apenas descrever o cadáver. Devemos narrar objetivamente sem ocultar nenhum detalhe, nem mesmo o cheiro. Sem perder nada de vista nem mesmo a mudança na cor da pele. Por isso, trabalhamos em duplas que se desfazem apenas quando um dos membros mostra sua incompetência para o final do processo. É difícil que haja capitulação. A maior parte das duplas segue unida até o fim da vida.

Nesta observação ficamos atentos à expressão “desejo de matar”. O voluntário parou de girar, caiu de joelhos olhando fixamente para a menina que jazia quase morta dizendo que a amava. Contei 39 vezes ao longo de 45 minutos em que ele permaneceu comovido, incansavelmente consumido em sua dor, suspirando e soluçando no ritmo que aos poucos foi demonstrando seu esgotamento. Nos primeiros 10 minutos a expressão “eu te amo” se repetiu praticamente sem barulhos ou esgares, foi dita entre intervalos sucessivos de silêncio que não duravam mais de 30 segundos, até uma pausa de um minuto e 18 segundos. Neste o voluntário começou a chorar compulsivamente e a dizer o contrário “eu te odeio” até que, no trigésimo sétimo minuto revelou, como que explicando a si mesmo – e, desconfio que tendo em vista a consciência de que era observado – que estava infectado do desejo de matar.

Meu colega nestes momentos quer sempre economizar tempo e chamar o próximo. Prefere ministar um antidepressivo enquanto o procedimento correto implica apenas três doses de álcool. A total confirmação do que já sabemos parece suficiente para seguir adiante. Quase me convenceu que se a cobaia fosse uma garota conhecida teríamos outro resultado, mas nosso sucesso depende do respeito ao tempo do procedimento e do caráter aleatório da cobaia feminina. Somente assim chegaremos à mãe. Somente assim, ele confessará o que queremos saber. Que matou o pai e que o fez apenas porque não pode matar a mãe. Os motivos, no entanto, serão avaliados em etapa para a qual ainda não fomos treinados.

Neste ponto, meu colega finge que não há mais tarefa alguma. Para não perder tempo, eu preciso interromper o preenchimento do formulário, conduzir o candidato até o vão e com um empurrão suave o lançar no abismo. Aquele que me olha de volta recebe um sorriso que não dou a mais ninguém.

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