Precisamos falar de ‘polarização’

Precisamos falar de ‘polarização’

 

 

 

 

“Há cada vez mais polarização no país”, eis um dos grandes truísmos dos últimos dez anos. Sobre isso, muitos concordam, mas o conceito de polarização dança conforme o entendimento e as conveniências de quem o usa. Na concepção mais popular, explorada até mesmo por políticos e comentaristas da mídia, há polarização nesta eleição porque, mais uma vez, os eleitores estão concentrando a atenção e as intenções de voto em apenas dois candidatos Esse seria o motivo dos dois candidatos serem os líderes isolados da corrida presidencial. Novamente, os outros concorrentes vão ficando a uma grande distância dos favoritos e, a menos de cem dias do pleito, já é razoável afirmar que nem os jornalões nem as campanhas dos demais candidatos encontraram um meio eficiente de romper essa propensão do eleitor brasileiro a negligenciar as outras ofertas eleitorais.

Polarização política, em seu sentido mais preciso, não é isto, mas o fenômeno que acontece quando as ofertas e os consumidores eleitorais se radicalizam, abandonando o centro e as posições mais moderadas. Polarização política é basicamente uma forma de radicalização ideológica e não o fato de que, numa corrida, dois competidores se desgarram dos demais. Há polarização, enfim, quando candidatos, partidos e eleitores se aglomeram nas posições mais extremadas, desistindo de construir pontes, negociar, estabelecer compromissos.

Mas, não importa, o que interessa é que a expressão passou a ser usada para o binarismo eleitoral. Por que se fez isso? Porque o termo já tinha uma carga negativa, pois, afinal, a nossa sensibilidade democrática não combina com radicalismo e extremismo. Foi por isso que as candidaturas preteridas e os comentários políticos cansados de certas hegemonias eleitorais escolheram um termo pejorativo para desqualificar esse estado de coisas.

Curiosamente, contudo, passam a responsabilidade pela tal “polarização” para as duas posições que disparam na preferência eleitoral, e não aos próprios eleitores, que, no final das contas, são os que não gostam de perder tempo e energia com muitas alternativas e se concentram teimosamente em apenas duas delas.

Muitos ficam frustrados porque em um ambiente político de tal modo multipartidário e fragmentado, como o nosso, parece incrível essa obsessão dos eleitores para apostar tudo numa disputa binária. Para abusar de uma metáfora do futebol, as pessoas esperam ver um campeonato inglês, como diferentes campeões e uma alternância considerável na liderança, mas em toda eleição se repete um campeonato espanhol ou alemão, ou seja, no máximo, dois times competitivos, e os outros fazendo eterna figuração.

Fala-se da polarização entre Lula e Bolsonaro, mas nada há de singular neste ano. A disputa concentrada nos dois simplesmente repete o que têm sido as eleições brasileiras desde 1994. Portanto, já são quase 30 anos nesse ritmo, nenhuma novidade. Os eleitores chegam até mesmo a se emocionar com uma terceira força, lá no meio da disputa – como com Ciro Gomes em 2002 e 2018 e com Marina Silva em 2010 e 2014 -, mas, no fim do dia, voltam a sua atenção e voto para os dois líderes da tabela, com voto útil e tudo o mais.  Indagados diretamente, os eleitores sempre dizem querer alternativas às duas forças hegemônicas, mas paradoxalmente não as consideram. Mesmo quando há boas ofertas e quando parecem ter com elas considerável afinidade ideológica, evidentemente. Gosto de X, mas ele não tem chances, então vou de Y mesmo para impedir que Z vença. É simples assim.

Além disso, desde os anos 1990, há sempre pelo menos um partido ou candidato fazendo alarde de que, desta vez e com ele, os eleitores vão ter, enfim, uma alternativa à contraposição entre o PT e o PSDB, ou entre o PT e o partido de Bolsonaro, seja lá qual for. O PMDB já se ofereceu para o papel nos anos 1990 e, mais recentemente, Marina Silva e Ciro Gomes insistiram que estavam prontos para ajudar o país a superar esse binarismo e todo o mal que dele deriva.

Em 2022, a campanha por uma terceira alternativa teve a adesão de pesos pesados da comunicação política, como o jornalismo de referência, celebridades, influenciadores políticos e até uma dúzia de partidos. Quase houve uma eleição primária para se escolher o candidato da “terceira via”, tantos eram os nomes em oferta e abundância da cobertura disponível. Contudo, esqueceram de combinar com os eleitores, que parecem mais resolutos do que nas eleições anteriores a apostar em apenas dois. Não deu certo antes, não está dando certo agora.

Ainda não conheço estudos que expliquem de maneira definitiva por que isso acontece na corrida presidencial e apenas nela. Claro, temos concorrentes com considerável taxa de sucesso na disputa presidencial nos últimos anos, que já monopolizam uma das posições na frente, como se fossem o Real Madrid ou o Bayern München. Há partidos (como o PT e o PSDB) e candidatos (como FHC e Lula) que adquiriram um considerável peso eleitoral e que foram ou são capazes de atrair por meio de inercia pelo menos 1/3 dos eleitores em cada eleição em que participam.

Mas isso teve uma história. Lula quase não conseguiu passar por Brizola na semifinal de 1989 e comeu poeira de FHC antes de ganhar quatro eleições seguidas, para si ou para a sua sucessora. O PSDB atravessou muito bem a década de 1990 e bastante bem a década de 2010, até que o mau passo de Aécio Neves em 2015 reduziu as chances presidenciais do partido a zero em 2022. Foi assim que o MDB e, depois, Bolsonaro, tomaram o lugar dos tucanos como o arquirrival do PT em 2016, 2018 e neste ano. De toda sorte, desde 1989, não importa se em tempos de bonança ou tempestade, as eleições têm se resumido, para o grande público, a um torneio à parte entre o PT e um, apenas um, grande rival. Isso é um aspecto a ser considerado. Mas é circunstancial, não normativo.

No território das hipóteses, tenho três delas que talvez ajudem a explicar esta tendência do eleitorado.

Primeiro, há que se considerar a eleição em duas fases, com apenas dois candidatos no segundo turno. Isso talvez explique a tendência brasileira a se concentrar em não mais que dois. Se, afinal, apenas dois vão disputar a final do torneio, melhor apostar em quem tem mais chance dentre aqueles que parecem representar melhor meus interesses ou preferências. Mesmo que os interesses sejam formulados no negativo, isto é, como preferência pelo candidato que tem mais cacife para vencer o representante do “outro lado”.  

Segundo, é preciso levar em conta o instituto da reeleição, que tornou o titular da Presidência ou o seu escolhido automaticamente um dos favoritos na corrida presidencial. Isso não vale para quem herda mandados não conquistados nas urnas, como Itamar Franco ou Michel Temer, mas parece ser regra para os presidentes eleitos. Na eleição seguinte, há sempre o escrutínio para ver se o presidente merece ser reeleito e não um jogo zerado e reiniciado. Desde então, nenhum titular deixou de ser reeleito e apenas uma vez (2002) um sucessor apontado não conseguiu a eleição, mas ainda assim monopolizou uma das vagas na reta final. Por outro lado, isso força a escolha de um desafiante que seja o mais forte possível para enfrentar o titular, descartadas as alternativas. É assim que desde 1998 a eleição tem sido decidida entre um presidente no cargo, ou o seu sucessor indicado, e um desafiante, em geral, do maior partido de oposição.

Terceiro, fiquem de olho na ideologia. Há, sim, ideologia envolvida nisso, pois desde 1989 houve sempre uma candidatura mais à esquerda e outra mais à direita, embora o grau de inclinação para um lado ou para o outro seja muito relativo às sensibilidades do momento. Nunca houve duas candidaturas competitivas exclusivamente pró-social ou pró-mercado, por exemplo, mas uma de cada. E mesmo quando a direita foi substituída pela extrema-direita, em 2018, ainda assim a contraposição básica se manteve.

E aqui pouco importam se Lula, FHC, Serra, Alckmin, Aécio, Dilma e Haddad parecem todos candidatos de centro diante de Bolsonaro.  O importante é que quem aprecia políticas sociais sempre teve os seus favoritos chegando em 1º ou 2º lugares. A mesma coisa ocorreu com quem aprecia pautas de austeridade fiscal.

Nesse último quadro, nem mesmo o antipetismo foi capaz de produzir um resultado diferente. Ao contrário, em 2018, quando a rejeição ao PT foi o principal cabo eleitoral do país, o antipetismo gerou uma formidável reação pró-petista, compactada pelo sofrimento e pela sensação de injustiça, que levou Haddad ao segundo turno. Este mesmo pró-petismo que estava disponível por inércia para catapultar Lula para a primeira posição nesta corrida eleitoral, deixando para trás os que, como Ciro Gomes, desejariam ocupar o lugar vazio deixado pelo PT. Da mesma forma, nem o impressionante antibolsonarismo foi capaz de destituir Bolsonaro da condição de um dos finalistas da corrida eleitoral, como tantos torcedores das “terceiras vias” desejaram, pois compacta, arregimenta e mobiliza o que resta de bolsonarismo em torno do presidente. O antibolsonarismo pode impedir a eleição de Bolsonaro, mas o pró-bolsonarismo que ele aciona o coloca como um dos protagonistas das eleições.

Outras hipóteses podem ser imaginadas, mas essas três provavelmente ajudam a entender porque terceiras e quartas vias geralmente não têm a menor chance em eleições presidenciais brasileiras.

 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes

 

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