Por uma imprevisível luta política

Por uma imprevisível luta política
(Foto: Marcos Vilas Boas)

 

Em Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação, o filósofo Vladimir Safatle conjuga o rigor intelectual em filosofia e psicanálise ao corpo a corpo com os acontecimentos desta época tão agitada e sombria. E encara a questão de nossos tempos: como transformar a gramática do poder para combater de modo efetivo os novos fascismos? Concebido em resposta ao convite de uma editora francesa para uma apresentação concisa e acessível das elaborações de Jacques Lacan sobre política, o livro explicita as bases do pensamento do próprio Safatle de maneira clara e vigorosa, sendo a obra mais importante de um dos principais comentadores políticos do país.

Mais que introduzir o leitor às concepções lacanianas sobre política, Safatle propõe uma introdução à teoria do psicanalista francês em chave política. Para isso, declina as implicações políticas de algumas das principais noções trabalhadas por Lacan, como identificação, transferência, gozo e ato. Não se trata em absoluto de “psicologizar” complexas questões sociais, tampouco de aplicar a teoria ao campo político, mas de mostrar que as próprias entranhas do pensamento lacaniano exalam política. Trata-se de defender que a psicanálise, longe de circunscrever a “psicologia profunda” e a intimidade de cada um, pode ser considerada uma verdadeira teoria política, na medida em que a instauração da “vida psíquica” está associada à adesão a modalidades de “sujeição social”, ou seja, a maneiras singulares de sofrimento – de mal-estar, de desconforto, como diria Freud – na cultura.

No entreguerras, Freud não recuou diante da necessidade de dissecar a estrutura do poder e denunciar o infantilismo da relação de cada indivíduo que compõe a massa com o líder idealizado. Analistas como Erich Fromm e Wilhelm Reich seguirão seu caminho nos anos 1930 e 1940, em análises do fascismo que também dialogam com o marxismo. E é nessa mesma trilha que Safatle posicionará as preocupações do jovem Lacan com a decomposição da ordem patriarcal e as tentativas autoritárias de compensação social que ela ensejaria.

A experiência do fascismo seria, para ele, o pano de fundo das elaborações lacanianas sobre o Eu, que ressaltam a agressividade, a rigidez e a redução narcísica do outro – em suma, a incapacidade de lidar com a alteridade e a diferença – em uma concepção de identidade marcadamente defensiva. Consequentemente, o psicanalista recusa o direcionamento da clínica para o fortalecimento do Eu e empreende uma revisão teórica dos princípios da identificação, defendendo uma espécie de despersonalização como horizonte de uma análise. 

Decomposição das relações de autoridade

Lacan também busca dissecar a estrutura do poder para esvaziar a figura do líder de suas vicissitudes imaginárias e afirmar sua importância como lugar simbólico. Tal tarefa, que talvez em si deva ser considerada um ato político, corresponde ao motor de todo processo analítico: a transferência. A argumentação de Safatle conduz à evidência de que ela consiste em vigorosa reflexão política, ao explicitar a força terapêutica da “decomposição das relações de autoridade” e do desvelamento dos mecanismos de sujeição, e de que deve mesmo ser reconhecida como genuína potência de emancipação.

Creio que todo psicanalista tenderia a concordar com essa afirmação – ou não se dedicaria a tal ofício –, mas a tomaria com muito cuidado e alguma desconfiança. No horizonte incerto de uma análise, é certo que paira alguma transformação do sujeito, mas ela não se confunde com promessas de cura ou salvação e deve ser criteriosamente apartada de qualquer ideal de liberdade ou autonomia. É justamente isso que busca Safatle: propor, com a psicanálise, outro léxico para as lutas sociais, que não seja aquele da racionalidade soberana e da identidade compartilhada. Ele encontrará uma via na ideia de que o analista, ao fim de um processo analítico, decai como um resto, explicitando a função atribuída por Lacan ao objeto a.

O lugar do poder não se revela propriamente vazio: nele, age algo como um corpo estranho, “irredutivelmente desidêntico e inassimilável”. Algo que, faltando, causa o desejo; e que provoca angústia quando deixa de faltar. Em um dos melhores momentos de Maneiras de transformar mundos, Safatle aponta que isso arruína a ilusão fundamental de identidade entre os membros de uma comunidade (e a correspondente miragem da identidade entre o poder e seus sujeitos), exigindo “uma teoria de corpos políticos desidênticos”.

Talvez possamos mesmo dizer que hoje esta é a tarefa histórica que nos cabe, com a psicanálise: recolher da subversão do sujeito uma potência de construção do comum que não opere por semelhança e conjunção de identidades (de si para si mesmo, e de si para o outro semelhante, ao qual se opõe o outro distinto e eventualmente odiado), mas, sim pela disparidade, pela disjunção de singularidades. O gérmen lançado por Safatle nessa direção deve nos chamar a mais elaborações – que sejam elas próprias disjuntivas e dessemelhantes e possam destronar os mestres; que sejam feitas por todos e não por um, como a poesia, segundo Lautréamont. 

O gozo de Lacan

Tal dispositivo de desidentificação, ao ser agenciado em reflexões e ações, põe necessariamente em crise o social. Como Safatle observa com astúcia, ele convoca a potência disruptiva a que Lacan dá o nome de gozo e declina politicamente ao afirmar que o capitalismo mudou nossa forma de gozar. Não se trata no social, portanto, de simples repressão do desejo, mas, sim, de adesão libidinal à espoliação do gozo, ou seja, de “inscrição de seu excesso e desmedida no interior das dinâmicas de reprodução social”, nas palavras de Safatle. Nossa tarefa implicaria, então, “retirar tal gozo para fora do modo de produção que o coloniza”. Mas como fazê-lo?

A resposta delineada por Safatle segue uma das vias mais sedutoras do pensamento lacaniano, mas também uma das mais arriscadas: o gozo feminino. Para chegar nele, é necessário passar pela questão fálica e destacá-la do patriarcalismo normativo ao qual leituras apressadas costumam atrelá-la, mostrando que “o falo não é uma norma generalizada, mas uma inadequação generalizada”.

Infelizmente, Safatle não dispõe do espaço necessário para percorrer os meandros das questões de gênero e tomar posição nos debates atuais, que convocam com urgência psicanalistas e estudiosos. Ele chega contudo a ressaltar que não se trata, no gozo feminino, de “reconhecer a falta para sustentar o complemento fantasmático de um Outro não castrado”, mas, sim, de “um processo ativo que visa quebrar os limites dos modos atuais de existência, os limites das formas de gozo avalizadas pelo capitalismo e seu patriarcado”. Resta-nos o desafio de esboçar algumas vias abertas por tal quebra – e parece-me convocar as mulheres, especialmente, a respondermos à observação lacaniana segundo a qual “não é possível dizer se a mulher pode dizer algo do gozo”. Afinal, experiências de dessubjetivação, longe de nos calarem, convocam-nos justamente a buscar transmiti-las, em ato.

Por isso, o último conceito trabalhado por Safatle é aquele de ato analítico: aquilo que acontece em uma análise como ação efetiva e transformadora, que destitui seu agente e performa, é, portanto, a própria subversão do sujeito. Em uma rápida passagem, Lacan o articula ao efeito “revolucionário” que o sintoma pode vir a exercer, desde que não seja “dirigido pela varinha dita marxista”.

O fracasso é revolucionário

Levando adiante essa indicação, Safatle vê no ato analítico uma operação de subversão no sentido preciso da derrubada de “uma ordem estabelecida através da ruína de suas bases, modificando o sentido no qual ela se fundamenta”. Assim, revolucionado, o sujeito perderia predicados como identidade, autonomia e substância para passar “a seu contrário”, no qual se daria “a realização efetiva de suas exigências iniciais de liberdade”.

É importante notar que a própria ideia de liberdade também aí se subverte, deixando de lado qualquer idealização para se articular ao “incurável”, ou seja, ao que resta e falha em todo processo analítico. Em vez de fracasso, Safatle propõe que se veja aí uma potência revolucionária no sentido do que dissolve formas anteriores para instaurar outras formas, pondo em movimento uma espécie de “devir revolucionário” do sujeito.

É esse o lance final do complexo xadrez teórico que o autor maneja em resposta à tarefa urgente de pensar modos não identitários de reconhecimento e organização social. O jogo se interrompe, no livro, em uma configuração que incita a outras jogadas, agenciadas por outros jogadores. O teórico não poderia ir além, argumenta o autor, sob pena de prefixar aquilo que deve surgir imprevisivelmente no seio da luta política. Mas o gesto não deixa de refletir, talvez, a paralisia que hoje nos acomete, especialmente no cenário nacional, marcado pelo que Safatle caracteriza como desrecalque do “Estado suicidário” – em uma ideia que me parece importante complexificar para além do autoextermínio desinteressado, na medida em que interesses do capital internacional em destruir as próprias bases institucionais e econômicas do país parecem antes configurar uma tentativa de assassinato. Nada de novo sob o sol: apenas mais um capítulo da violência colonialista que bem conhecemos.

Resta a aposta na possibilidade de assumirmos posições no xadrez teórico e político, a fim de fazer do pensamento, ato. De contribuirmos na reconfiguração de operações de subversão das forças de exploração e exclusão social que hoje não escondem sua vocação ao genocídio. Afinal, como dizia Mário Pedrosa, “ser revolucionário é a profissão natural de um intelectual”. 

TANIA RIVERA, ensaísta e psicanalista, é professora na Universidade Federal Fluminense e da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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