A persistência do teatro narrativo

A persistência do teatro narrativo

Foto Renato Peixoto

A encenação de Dadesordemquenãoandasó (no original inglês, Clutter keeps company), texto do dramaturgo escocês Davey Anderson, realizada pela Companhia ARTERA em parceria com a Cia. Provisório-Definitivo, comprova com bastante propriedade uma tese conhecida pelo público que costuma frequentar com regularidade as salas de espetáculo da capital paulistana: o velho teatro narrativo ainda pode exercer um bom poder de atração sobre os espectadores. A peça conta a história de uma típica família de classe média do Ocidente nos dias atuais. Em virtude de o marido tê-la abandonado para viver com outra mulher, Maureen se vê obrigada a trabalhar demais, não tendo tempo, em decorrência disso, de dar a devida atenção ao casal de filhos adolescentes, Steve e Julie. À própria Julie, então, cabe a tarefa de cuidar de si mesma e do irmão, que, por ser portador da síndrome de Asperger, inspira cuidados especiais. Ocorre que Julie, pressionada pelas demandas internas que a querem ver logo ingressar na vida adulta, negligencia a atenção ao irmão – o que ocasiona um incidente, a princípio pitoresco, mas que pode vir a ter, no entanto, desdobramentos mais sérios – dos quais farão parte o namorado da jovem e a família de mórmons que vive ao lado da casa de Maureen.

Em termos dramatúrgicos, a peça trabalha com elementos dramáticos muito próximos da convenção: manejo de personagens empáticos, delineados em traços gerais; construção de enredo cujas células narrativas são interdependentes e dispostas em regime de progressão discursiva, com o objetivo de manter o público em expectativa constante sobre os acontecimentos dos quais é feita a peça; exploração do tema das relações interpessoais apresentadas pela moldura da feição psicológica; foco na caracterização de uma dificuldade específica de determinado personagem e no acompanhamento de como este irá superar, ou não, tal dificuldade; inserção intermitente do registro cômico, de modo a suavizar com regularidade uma atmosfera que oscila entre o dramático e o melodramático. Os grandes riscos de criações dramatúrgicas que lançam mão de tais elementos são os do esquematismo que está sempre a espreitar a construção da peça bem-feita e o subsequente maneirismo que ela prevê no que tange ao modo de recepção da plateia ao que lhe está sendo apresentado – traços que tanto o texto de Davey Anderson quanto a direção de Carlos Baldim evitam que sejam dominantes, o que poria boa parte dos acertos da presente encenação a perder.

 

Foto Renato Peixoto

Mensurar o grau de sensibilidade empregado por determinada criação dramatúrgica é das tarefas mais difíceis, porque talvez assentada em boa dose de subjetividade e idiossincrasia. Entretanto, ainda que tal mensuração seja discutível, parece ser mesmo pela via da sensibilidade que o texto de Anderson ultrapassa a moldura da peça bem-feita (depois de se servir com muita eficiência dos mecanismos que costumam engendrá-la), oferecendo a artistas e público a possibilidade de fruição de uma experiência artística incomum. Somos de fato atraídos por aquela série de acontecimentos, desejando acompanhar a pequena aventura em que se mete o jovem Steve, não propriamente pelo fato de ele ser portador de uma síndrome rara – o que, por si só, poderia despertar em nós um tipo de bom mocismo muito proveitoso para inúmeros produtos de que se serve a indústria cultural, mas bastante inócuo para o que a arte do teatro, potencialmente, tem a dizer ao mundo contemporâneo –, e sim porque há algo na vulnerabilidade dele que nos toca de perto e talvez nos irmane. Para além da doença, Steve é o rapaz que vive à margem da comunicação fática, que se revela para nós tão precária quanto o modo pelo qual ele lida com ela. Além disso, Steve toma parte em uma odisseia executada em pianíssimo, marcada pelo diapasão da interioridade e da imaginação – o que, frente ao acento tonitruante da vida moderna, feita de ações exteriorizadas e ralíssimo poder imaginativo, constitui uma grande ação de resistência.

Foto Renato Peixoto

A mesma sensibilidade no trato de material tão ambivalente é empregada pelo diretor, pelos atores e pelos demais profissionais envolvidos na montagem, entre os quais se destacam os responsáveis pelo cenário belo e funcional (de responsabilidade do próprio diretor em parceria com Cesar Santana), pelos figurinos muito eloquentes (a cargo de Maitê Chasseraux) e pela expressiva iluminação (concebida por Fran Barros). Ao jovem diretor Carlos Baldim cabe a tarefa de não lutar contra o texto original, excedendo a natureza daquilo que a peça de Anderson tem a oferecer. Baldim explora com muita eficiência os tempos da ação, os jogos de sentido, as nuances de registro, a alternância entre a leveza e a dramaticidade. A ele também compete tornar mais naturais dentro da dinâmica da encenação as excessivas narrações de que se valem os personagens para fazer a história avançar, além de eles mesmos a viverem em seus momentos-chave. Não fosse o artificialismo com que se produz, o recurso constituiria de fato um componente épico do texto, a ser explorado pela direção. O diretor opta por manter tais intervenções no mesmo registro do naturalismo reinante, porque quer apresentar a fábula em ritmo contínuo, explorando a cadência narrativa natural, ou habilmente naturalizada, de que se vale o texto.

Os atores reunidos em cena executam muito bem o tipo de performance que o texto e a encenação solicitam deles, caracterizando com a devida cota de energia criativa personagens de contornos gerais, que estão mais a serviço do encadeamento da fábula do que propriamente de suas próprias interioridades profundas. Andrea Tedesco, Anna Cecilia Junqueira, Paula Arruda, Pedro Guilherme e Ricardo Corrêa se desincumbem muito bem da tarefa de tornar interessantes para nós, espectadores, as figuras dramáticas que defendem, ora fazendo-as mergulhar nos climas de densidade psicológica reservados de tempos em tempos para elas, ora levando-as a participar com muita vivacidade do jogo do “dentro e fora da obra” que a encenação propõe. Ricardo Corrêa merece menção especial, em virtude de conferir ao protagonista Steve uma dignidade dramática muito bem calibrada, fazendo evocar a máxima do poeta britânico William Wordswoth (1770-1850): “O menino é o pai do homem”.

Foto Renato Peixoto

Dasesordemquenãoandasó é daqueles espetáculos que pode vir a ter uma vida longa, destinada a se dirigir às mais variadas plateias, embora haja um grande potencial na encenação no sentido de a empreitada se constituir uma ótima oportunidade para a formação de novos públicos ou para a atração do público jovem, em especial, ao teatro. Os espectadores mais afeitos à linearidade do teatro narrativo sairão do espetáculo bastante satisfeitos com o grau de prazer que ele lhes proporciona. Já aqueles mais voltados à experimentação de linguagens não irão propriamente se frustrar, sobretudo se entenderem que todos somos ainda animais narratológicos, atraídos por uma forma em desuso, mas não de todo extinta. Uma forma que procura constantemente amarrar a vida verdadeira que ela procura descortinar à vida real, tornando menos impalpáveis as palavras de Walter Benjamin em seu célebre ensaio: “O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida”.

Dadesordemquenãoandasó
Onde Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323, Pinheiros, São Paulo)
Quando até 28 de março (sábados, às 21h; domingos, às 19h; segundas-feiras, às 21h)
Quanto R$ 20 e R$ 10
Info (11) 3801-1843

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