Pequeno glossário freudiano

Pequeno glossário freudiano
Desejo, fantasia, pulsões, narcisismo: entenda alguns conceitos fundamentais de Sigmund Freud (Foto: Reprodução)

 

Professora no Instituto de Psicologia da UFBA e integrante do Colégio de Psicanálise da Bahia, Suely Aires explica alguns conceitos fundamentais de Sigmund Freud


Um glossário propriamente freudiano não pode ser apresentado em ordem alfabética, mas se faz construir associativamente: a partir de termos mais fundamentais são convocados outros termos e aos poucos se tece uma rede conceitual. A ‘língua’ freudiana se produz como enlaçamento entre a exigência clínica, a invenção conceitual e o uso de palavras cotidianas.

 

Inconsciente

 

Conceito diferencial da psicanálise em relação a outras teoria do psiquismo humano, o inconsciente  – das Unbewusste – é apresentado, na primeira tópica freudiana, como um sistema psíquico com leis próprias. É definido por Freud como “uma hipótese útil” para pensar a produção de sintomas. O inconsciente articula-se à memória e é constituído por conteúdos recalcados, os quais tem seu acesso recusado à consciência. No inconsciente, os processos psíquicos seguem leis que definem suas características: atemporalidade, mobilidade dos investimentos, ausência de negação e regulação exclusiva pelo princípio do prazer.

 

Formações do inconsciente

 

 

Cada uma das formações do inconsciente – atos falhos, lapsos, chistes, sonhos, sintomas – traz as marcas de sua origem e  revela o funcionamento inconsciente. Estruturam-se por meio de processos de deslocamento e condensação, os quais se dão a ver em sua dimensão de linguagem. A relevância de discutir as formações do inconsciente diz respeito à produção de uma indistinção qualitativa entre normal e patológico. Nessa direção, Freud constitui uma psicopatologia da vida cotidiana, visto que cada um/a de nós pode produzir sonhos, atos falhos, lapsos e chistes sem que isso signifique qualquer adoecimento. Mesmo o sintoma pode ser compreendido como um arranjo ou desarranjo subjetivo, não implicando, necessariamente, qualquer patologia.

 

Realidade psíquica

 

 

Segundo Freud, o desejo molda o modo como interpretamos o que nos cerca. A realidade psíquica é, portanto, aquilo que resiste à realidade material exterior e que ancora-se no conceito de inconsciente, no princípio do prazer e na fantasia. Nesse sentido, a realidade psíquica é “uma forma de existência especial” coerente e consistente com o desejo, ainda que dissonante em relação à realidade material.

 

Desejo

 

 

O termo freudiano Wunsch não deve ser confundido com désir, conceito fundamental na argumentação de Jacques Lacan, ainda que ambos sejam traduzidos em português por desejo. Para Freud, o Wunsch remete mais propriamente à ideia de aspiração, voto de que algo se realize. Articula-se ao registro de memória de uma satisfação anterior, o que permite que se busque alucinatoriamente, por meio da reativação da percepção, o mesmo percurso de satisfação. É nesse sentido que se torna possível falar do sonho como realização de desejo.

 

Fantasia

 

 

A fantasia tem, na acepção freudiana, a estrutura de uma cena. Diferencia-se, portanto, da noção de devaneio ou  ilusão por sua estabilidade. A fantasia inconsciente articula-se ao desejo e permite a representação ou encenação de um dado arranjo que implica o sujeito, ainda que em posição de elemento da cena. Como bem indicado no texto freudiano Bate-se numa criança (1919), a composição fantasmática institui posições definidas e cambiáveis que definem, de forma visual e/ou reduzida à estrutura de uma frase, a indissociabilidade entre o sujeito que fantasia e sua condição de objeto no enquadramento da fantasia.

 

Sexualidade infantil

 

 

Freud amplia a concepção de sexualidade humana, não mais a reduzindo ao ato sexual genital, e coloca em questão a hipótese de que a reprodução é sua finalidade última. Nesse contexto, o prazer do corpo, em suas múltiplas experiências, ganha destaque e permite indicar um percurso de constituição da sexualidade que é variável em sua finalidade e forma – uma sexualidade perverso polimorfa. “Falando com propriedade, todo o corpo é uma zona erógena”, diz Freud, em que as zonas erógenas são constituídas pelas experiências prazerosas, tendo como apoio as funções biológicas, sob incidência do outro cuidador.

 

Pulsões

 

 

Talvez o conceito mais  complexo da teorização freudiana, a pulsão – Trieb – é concebida como uma força constante, cuja fonte é orgânica e visa a satisfação por diferentes caminhos. O objeto da pulsão é o elemento mais variável, podendo ser substituído de modo a possibilitar a satisfação, sempre parcial. Como conceito fronteiriço entre psíquico e somático, a pulsão implica o corpo de modo singular. Ao utilizar o termo pulsões, no plural, Freud destaca sua multiplicidade. A distinção entre pulsões sexuais, de autoconservação, de vida e pulsão de morte responde a diferentes problemas clínicos em momentos distintos do percurso freudiano.

 

Identificação

 

 

Conceito fundamental para pensar a indissociabilidade entre uma psicologia de grupos e uma psicologia individual, a identificação é apresentada por Freud como constitutiva do eu em sua relação com o outro. De um lado, Freud descreve a identificação como um processo que precede a escolha de objeto, como uma apropriação do outro ou de um traço do outro que constitui, por assimilação, o eu. Nesse sentido, o eu se constitui por alteridade, tornando próprio o que é alheio. Por outro lado, Freud indica que a identificação pode vir a suceder a um investimento libidinal no objeto, tal como acontece no processo de luto, pluralizando as identificações e permitindo supor a composição de um eu que, a despeito de sua aparente unidade, sustenta-se em identificações múltiplas e sucessivas.

 

Narcisismo

 

 

Inspirado pelo mito de Narciso e retirado dos manuais de psicopatologia de período, o termo narcisismo foi utilizado por Freud para definir uma forma de investimento pulsional que toma o próprio eu como objeto, constituindo-o como distinto do mundo à sua volta. O eu é aí apresentado em sua íntima articulação ao corpo e se constitui por meio de uma operação, não sendo, portanto, um dado natural do desenvolvimento. O conceito de narcisismo se mostra fundamental para discutir diferentes modos de organização psíquica em sua relação com o corpo, o outro e os ideais da cultura.

 

Psicanálise selvagem

 

 

Expressão utilizada por Freud em 1910 para referir-se a interpretações ou intervenções ditas psicanalíticas fora do contexto clínico e transferencial. Aponta, portanto, para uma apropriação do corpus teórico psicanalítico de forma superficial e equivocada por desconsiderar a ética que guia sua leitura. Nesse sentido, o último dos termos do presente vocabulário convida à escrita de um outro glossário, dessa vez tecido em torno da experiência clínica.

SUELY AIRES é professora no Instituto de Psicologia da UFBA, integrante do Colégio de Psicanálise da Bahia e uma das fundadoras do Centro de Pesquisa Outrarte: Psicanálise entre Ciência e Arte (Unicamp).


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