Privado: Pensar a Saúde nos dias de hoje

Privado: Pensar a Saúde nos dias de hoje

Eu costumo falar de filosofia, ética e educação em muitos lugares, com diversas pessoas. A convite da Escola Municipal de Saúde de São Paulo, realizei hoje uma das palestras magnas do Congresso de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde. Meu tema era Formar para a Vida. E meu assunto, a relação entre ética e educação. Estou escrevendo um livro chamado FILOSOFIA PRÁTICA e um dos capítulos trata justamente da relação entre ética e educação. Na verdade, eu queria mostrar como a ética constrói a educação e a educação, ela mesma, é uma ética. A conversa transitou em torno de conceitos de teoria e prática, de questões e reflexões que nos permitam levar a sério a pergunta ética essencial: “o que estamos fazendo uns com os outros?” na direção de uma educação como emancipação.

Mas houve algumas perguntas que não puderam ser respondidas. Deste modo, coloco-as aqui. Deixo de fora, os bilhetes que recebi com comentários, porque prometi responder as perguntas. Agradeço pela escuta das duas mil pessoas que estavam lá. Muita generosidade para um sábado de manhã!

“A transformação é sempre para o bem? Que transformação está por trás da Sociedade do Conhecimento?”

Você faz duas perguntas. A primeira implica a liberdade: há transformação para o bem e para o mal, é claro, pois é a um lugar ou ao outro que nos leva a nossa liberdade.  Mas quando falo em transformação, estou interessada em dizer daquilo que melhoras as condições de nossa vida seja pessoal, seja coletivamente.

O que chamamos de “Sociedade do Conhecimento” é, ao mesmo tempo, Sociedade da Informação. Se o conhecimento for reduzido à informação veiculada pelos meios de comunicação seja televisão, rádio, internet, perdemos muito do seu significado. O campo do conhecimento é muito amplo. Precisamos aprender a compreender que o conhecimento se dá de muita formas, por diversos caminhos (ou métodos) e tem relação direta com nosso desejos e nossos afetos.

Eu gosto da ideia de pensar a Educação como prática de transformação, mas isso só será possível se ampliarmos nossas perspectivas relativamente ao que entendemos por educação e por conhecimento. Se tivermos um conceito de conhecimento como descoberta e autoconstrução, e não apenas como um conteúdo a ser transmitido, veremos que o que está em cena é sempre nossa experiência com o outro, com os estudantes, alunos, professores, colegas. Nós nos ajudamos uns aos outros para conhecer. Nós somos os agentes que impedimos ou possibilitamos a aprendizagem.

“Tanto a moral quando a ética são inerentes à pessoa?”

Podemos dizer isso apenas se considerarmos que a vida em sociedade é inerente às pessoas que nelas vivem. Importante, a meu ver, é não naturalizarmos a cnossa compreensão de moral e de ética. Mesmo que a capacidade de pensar seja “natural” para seres humanos, a compreensão que é o trabalho mais delicado do entendimento nunca é natural. Ela depende da linguagem. A linguagem depende do tempo, da história, do lugar. Ora, e o que é moral? É o conjunto dos hábitos de uma época, de um lugar. A moral tem muito a ver com o que, no campo do conhecimento, é o senso comum. Ou seja, com aquilo que pensamos e fazemos por já estar dado, já estar pronto. A ética é a reflexão sobre o que fazemos, e, sobretudo, o que fazemos um com os outros, à medida que somos sujeitos de convivência, que vivem em coletividades mais ou menos estreitas, mais ou menos próximas.

Tanto a moral quanto a ética são históricas. São apreendidas pelas pessoas. Por isso mesmo é que podemos sempre melhorá-las.

“Você disse que há uma possibilidade de nossa sociedade poder mudar com a Abertura Política, movimentos sociais, ONGS, etc. Prevendo um futuro “mais pensante”, porém parece que nossos jovens lêem muito pouco, parecem também capitular a essas tecnologias e redes sociais usadas para coisas rasas. O que vc pensa sobre isso?”

Que não podemos ter preconceitos com as novas tecnologias. Também não podemos perder a crítica. Nossa vida depende hoje das tecnologias como meios. O complicado é pensar que a internet, ou a televisão, ou até mesmo o livro, é um fim e não um meio. Temos nos questionar sobre os meios e os fins. É este questionamento que nos permitirá uma vida diferente.

Eu realmente ponho na fé na juventude. Acredito ue há muito gente incrível lendo e usando a internet ao mesmo tempo. Acho que a falta de leitura de muitos jovens advém de uma educação mal feita, de um exemplo ruim que é dos adultos. O descaso de uns com os outros é a marca de nossa cultura. Marca a ser transformada.

“Você acha que interessa ao nosso governo ter pessoas pensantes, visto que não há investimento na educação de base?”

Certamente não interessa a nenhum poder que se transforma em violência. A educação tem sido – desde a ditadura militar – reduzida à preparação para o trabalho em um sentido técnico. Neste aspecto que temos que pensar em Formar para a vida. Discutimos hoje durante o encontro, sobre os sentidos da palavra Vida, em seu sentido ético e político e não apenas biológico. Esta questão não pode mais ser tomada por nós em sentido abstrato. Só uma educação como ética e política mudará este cenário. Mas isso não vem apenas de fora de nós, mas também de dentro. De nossa capacidade de nos envolvermos com isso tudo exigindo nossos direitos e deveres de cidadãos em um país em que a tanatopolítica, a guerra de todos contra todos, precisa ser superada.

“Você falou do conflito entre os sexos e da repressão da mulher. Mas o verdadeiro conflito não é entre mulheres que tem filho homem e as que tem filhas?”

Se bem entendo sua perguntas, você quer dizer que as mulheres são as educadoras dos homens? Por favor, me corrija se entendo mal. Mas creio que todos educamos uns aos outros. Não é só responsabilidade das mães. Certamente que, uma mulher que tenha uma filha muher, se amar sua filha, será necessariamente, na teoria e na prática, uma feminista.

Abaixo um artigo que escrevi para o jornal da SBU (Sociedade Brasileira de Urologia) e que tem como tema “Pensar a Saúde nos dias de hoje” e que pode nos ajudar a pensar muitas dessas questões

“Pensar a Saúde nos dias de hoje”

Marcia Tiburi

Saúde como questão política

Há quem diga que a Saúde no Brasil é um problema de saúde pública. Na brincadeira fica claro o fato de que tudo o que concerne ao  campo da Saúde, é um problema eminentemente político. Isso significa dizer que se trata de um problema de poder. O âmbito do político refere-se ao que implica a todos, o que a todos concerne, sejam usuários ou profissionais do sistema em questão. Todos sabemos que vivemos em uma sociedade na qual inevitavelmente partilharemos, de um modo ou de outro, os efeitos funestos de nossas próprias atitudes, projetos e propostas. Não somos ingênuos, embora possa parecer.

A Saúde – assim como o Direito, a Religião ou a Educação – faz parte dos dispositivos do poder usados pelo sistema econômico e social para manter as coisas como elas estão. Sempre podemos nos perguntar se poderia ser diferente no que concerne a estes campos essenciais em nossas vidas concretas.

Neste contexto é que podemos sempre nos colocar uma pergunta política relativamente à saúde: que saúde temos e que saúde queremos? Acontece que esta pergunta não pode ser respondida livremente porque há limites em nossa compreensão da política. Esses limites são éticos. De modo que, então, precisamos nos colocar a questão ética ainda mais fundamental que a questão política para pensar sobre o caso da saúde no Brasil: “o que estamos fazendo uns com os outros?”

Sabemos que é a ética que funda a política e vice-versa. Podemos resumir a relação entre as duas dizendo que, enquanto a ética constrói a política por dentro, a política constrói a ética por fora. Isso quer dizer que uma depende da outra.

Saúde como questão ética

Tendemos a considerar que o problema da saúde está entre os sujeitos implicados em seus processos. Fala-se em “humanização da saúde” pondo em cena, de um lado, o embrutecimento e, de outro, a necessidade de sensibilização das pessoas, profissionais e familiares envolvidos com pacientes. De fato, é sempre melhor que as pessoas se tornem seres humanos respeitosos e, até mesmo, possam ser amorosos uns com os outros. Mas a amorosidade ou a competência para a caridade – o assistencialismo possível –  não resolveria o problema da Saúde. Nem de nenhuma outra área. Se quisermos debater a questão do que vem sendo chamado de “Humanização da Saúde” teremos que fazê-lo em termos éticos e políticos, sem separar o ético do político, sem reduzir a questão à mera moralização adocicada que em nada mudará o cenário de nossas vidas.

Assim, quando falamos de ética não nos referimos simplesmente a um respeito com o próximo apenas no sentido da assistência que lhe devemos. Ética é uma palavra que vem de “ethos”, palavra que se traduz por casa, lar, lugar onde se vive. Daí que ética seja, em certo sentido, a ciência da convivência. Como ciência oriunda da filosofia ela não pode buscar nada que não seja verdadeiro. No que se refere à convivência, diremos que o máximo que dela alcançaremos é que seja boa e justa. A convivência implica o “com-portamento”, ou seja, o modo como alguém se porta em relação ao outro. Daí que a pergunta “o que fazemos uns com os outros?” seja fundamental à ética que é, em última instância, a nossa filosofia prática.

O que está por trás do descaso com a saúde?

Ora, o que se faz com a Saúde tem a ver com o que fazemos uns com os outros.

Precisamos, neste sentido, ver o que está em jogo no descaso atual com a Saúde. Certamente ele nasce de um descaso geral com o outro que é próprio de nossa cultura e da política profissional que dela faz parte. O tema do “outro” é muito importante em nossas vidas sobrecarregadas de narcisismo, egoísmo e toda a crença na identidade que erige as instituições voltadas apenas à sua própria auto-conservação.

A pergunta “o que estamos fazendo uns com os outros”? implica o complexo tema do “reconhecimento” em que o outro não pode ser tratado como um meio, como um objeto, como uma coisa. O reconhecimento só é possível, por sua vez, quando refletimos sobre nós mesmos, quando somos capazes de pensar naquilo que fazemos.

O outro sempre pode ser uma espécie de inferno. Mas é também o grande desafio, o desafio da diferença, sem a qual não nos constituímos nem como seres do conhecimento, muito menos como sujeitos éticos.

Perguntamos, neste contexto, sobre o descaso geral em relação à Saúde, por que, embora tudo o que se refira à ela pareça sempre, em primeiro lugar, questão de necessidade, trata-se também de uma questão de cultura que antecede as urgências da vida. Vivemos a cultura da desvalorização geral de todas as coisas que não tenham um valor imediatamente financeiro. Alguns dizem que vivemos no contexto da desvalorização da vida. Mas isso só tem sentido se pensarmos que ela está inserida na desvalorização da cultura, que inclui a desvalorização da educação, a desvalorização das pessoas de um modo geral. É a grande desvalorização da subjetividade, do direito de cada um a uma vida justa, boa, honesta. A desvalorização da própria ética e da própria política também pertencem a este quadro social geral. A desvalorização da Saúde enquanto prática, enquanto campo, é notória pela desvalorização dos médicos, das enfermeiras, dos pacientes, do próprio sistema que serve como dispositivo de aviltamento de todos os implicados. O clima de medo instaurado muitas vezes entre médicos e pacientes diz respeito à perda da dimensão do sentido de todos os envolvidos na profissão, eles mesmos desvalorizados como indivíduos e como sujeitos.

Podemos nos perguntar neste sentido sobre o estatuto da medicina como ciência humana e sobre o seu papel na formação de uma auto-compreensão da própria área da Saúde da qual ela é o núcleo exemplar. Em outros termos, o que médicos tem a nos dizer sobre sua prática em um contexto em que já não são chamados a pensar? Apesar dos incrementos técnicos, a medicina nunca foi apenas uma ciência tecnológica, ela sempre envolveu um conhecimento dos tratamentos em relação a condições orgânicas e corporais, bem como subjetivas de seus pacientes. A medicina sempre foi uma filosofia prática, e justamente por isso, uma ética.

Para seguir pensando nisso tudo, faz-se necessário um verdadeiro movimento de reflexão crítica, na direção de uma auto-compreensão que nos permita entender a conexão entre ética e política no campo da Saúde. Contribuiremos refletindo sobre o que vemos, sofremos e fazemos todos os dias enquanto ajudamos a abrir os olhos uns dos outros para que possamos ver melhor o mundo ao nosso redor. Quem sabe assim, possamos melhorá-lo.

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