Pelo direito à literatura – sobre Os Piores Dias De Minha Vida Foram Todos de Evandro Affonso Ferreira

Pelo direito à literatura – sobre Os Piores Dias De Minha Vida Foram Todos de Evandro Affonso Ferreira

O título do novo livro de Evandro Affonso Ferreira diz de um julgamento absoluto em relação à vida, esse processo em que cada um é Sísifo subindo a montanha com a tenebrosa pedra do dia a dia nas costas. Movendo-se entre o horror ancestral e o atual, um horror perdido na antiguidade e revivido na contemporaneidade, não se trata, contudo, em Os Piores Dias De Minha Vida Foram Todos de uma prosa pessimista. Niilismo também não seria a marca dessa aprendizagem da morte acalentada pelo maravilhoso exercício de estilo que caracteriza a obra de Evandro. No aspecto relativo ao conteúdo, tampouco se pode dizer que há, nesse livro, algo de descaso, de cansaço, ou de desistência em relação ao viver. Há, é certo, o direito à morte de que falava Maurice Blanchot. Aquele direito à morte que, nos tempos da imortalidade de plástico que estamos experimentando, constitui uma resistência mais do que estética.

Trata-se de resistência política que se elabora como atenção e respeito ao excluído. É isso mesmo. A obra de Evandro Affonso Ferreira sempre foi a prosa do excluído. Não somente do excluído social, que ele contempla com o respeito de um herói ético em tempos de extermínio das pessoas e seus corpos singulares – a “gente-escoralho”, os errantes que vivem pelas ruas – aviltados pelo sistema de poder, pelo capitalismo e pela indústria cultural. Trata-se do excluído também relativamente à forma de pensar, daquele que, perplexo com as atitudes humanas, se retira para ver melhor, para contemplar e, no ato de sua contemplação, sai da caverna, como o herói platônico e descobre, estarrecido, que o ser humano é feito de desespero. Verdades essenciais de um outro tempo continuam as mesmas no cenário do desespero que não sabe de si: a dor, o sofrimento, a fantasmagoria, a ilusão. A mudança que há entre arcaico e moderno está apenas na plasticidade da ilusão. “Descendentes de Tântalo”, continuamos supliciados, mas acreditando agora nas marcas, no dinheiro, nos ornamentos, contentes no campo da “patetice humana”, cegos para o poder da Vanitas, a vaidade que serve apenas para enganar a morte. E que, certamente, não a engana.

O narrador de Os Piores Dias De Minha Vida Foram Todos faz literatura como filosofia enquanto o gesto de escrever é batalha contra alguma lei, contra a própria lei da literatura, como um dia declarou Blanchot, escritor que também era filósofo.  Daí a figura feminina como narradora. Uma figura feminina para além dos estereótipos da mulher: ela é mulher, mas fala de seus amigos homens, amigos que eram homens de estudo, escritores, filósofos. Homens com quem ela conversava sem preconceitos de gênero, e sem afetos eróticos como deve haver nas construções estereotipadas. Homens com quem ela convivia em irmandade profunda.

A questão da fraternidade é, a propósito, o fio que costura a narrativa. A relação com o outro como aquele a quem devemos a preservação de sua dignidade define o que vem a ser fraternidade.

A dignidade é a dádiva que oferecemos a quem é nosso irmão, a quem, como nosso amigo, é sempre nosso irmão. É o que se tem a dar, o que se pode trocar em uma relação de amizade. Daí que o livro se explique por si mesmo na escolha por Antígona como um personagem ideal. Antígona é a metáfora viva, a alma imortal que sobrevive em nossa história simbólica, a preservar nosso direito à sepultura. A sepultura como metáfora do direito à dignidade. O direito a ser quem se é, o direito de ter um lugar, o direito ao respeito mesmo quando não se pode esperar mais nada, pois que se está morto. O direito, portanto, fora de toda utilidade, fora de toda relação que não comporte senão a dádiva, aquilo que podemos conceder a quem não está mais entre nós. Só o que nos pode ser concedido quando já não somos. E, com Antígona, trata-se também do direito à literatura como batalha pelo que nos dá dignidade, o direito a ir contra toda lei abstrata que nos humilha anatomopoliticamente ou biopoliticamente, em nossos corpos vivos tratados como coisas de plástico. Contra a lei da publicidade, contra o capitalismo e sua lógica de extermínio. É disso que esse livro fala. Do direito, portanto, de ter um corpo que não encarna o poder, que não se submete. Que, antes, combate o poder em si mesmo. Por isso, é à Antígona que a narradora comatosa dirige seu apelo, sua prece, sua confiança enquanto, num quarto de hospital, se vê consumida pela doença para a morte, a corrupção do corpo pelo sistema. O desespero kierkegaardiano de saber-se desesperado é o que se contempla em seu discurso. Um apelo a Antígona não para dizer que é preferível morrer, o que seria banal. Mas para dizer que o combate dignifica a vida e que por ele se deve morrer. Sabendo que o direito à morte equivale ao direito à vida.

Com Os Piores Dias De Minha Vida Foram Todos, Evandro Affonso Ferreira segue em sua ascese literária, à qual ele entrega a sua vida garantindo o nosso direito à literatura.

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