Pedro, o aljôfar

Pedro, o aljôfar
Foto: Noah Rosenfeld/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”. 


 

O sol ainda não havia se erguido no céu quando Pedro abriu os olhos. O frio do inverno castigava. Quis ficar mais tempo na cama. Se encolheu todo. O cobertor mal cobria ele e a companheira, que acordou e, rapidamente fora da cama, olha para Pedro como quem diz: e o meu café?

– Está bem, Princesa! Vou buscar o seu café. O nosso café!

Pedro sentou na beirada do colchão, tateou o chão até encontrar os seus chinelos, muito gastos. Melhor que sentir esse chão frio, pensa. Ele dobra o cobertor e coloca-o sobre um amontoado de coisas. Tira o lençol do colchão e repete a mesma ação. Princesa apenas o observa sentada, aguardando o final daquele ritual.

De chinelo preto, bermuda jeans, camiseta azul e por cima um casaco preto com uma grossa listra branca atravessada na diagonal, Pedro atravessa a rua com Princesa rumo a padaria. A moça do balcão o comprimenta com um sorriso. A única. Alguns olham para ele com ar de repugnância, outros nem sequer o notam ou fingem não notar. Pedro sabe que é preciso aguardar. São cinco horas da manhã, talvez espere até às oito horas para poder tomar seu
desjejum. Ele fuma do lado de fora, seu primeiro cigarro do dia. As prazerosas tragadas ajudam a saciar a fome. É preciso esperar. Enquanto espera sua vez, senta na calçada. Princesa faz o mesmo. Ali os dois observam os carros passando, ônibus, em alguns momentos um pequeno engarrafamento por causa do estacionamento ali do lado.

Homens de ternos e gravatas passam com a cara no celular, mulheres de saltos passam fazendo toc toc ao andar. Pessoas vestidas com roupas de ginásticas. Velhas agasalhadas passam com o carrinho, provavelmente vão à feira ou ao supermercado. Pedro não consegue ver seus rostos. Usam
máscaras e seus olhares são dispersos.

Alguns olham para Pedro, olhar de antipatia, outros olham e desviam rapidamente, outros olham e não veem ninguém. Pedro observa uma pequena gota de orvalho na folha de uma planta que insiste em nascer
entre as pedras da calçada portuguesa. Pedro sonha se transformar em aljôfar. Quanto mais forte no céu o sol fica, o aljôfar vai desaparecendo, sútil, vaporiza.

A língua da Princesa em seu rosto o desperta. Dormiu sentado. O sol vai alto no céu. Pedro abraça Princesa agradecendo a lambida. Contente, ela senta no colo dele. A Moça do balcão, sorridente, entrega-lhe uma sacola. Pedro agradece e sai da padaria com Princesa caminhando satisfeita ao seu lado.

– Nosso rango, Princesa.

Em uma rua transversal, Pedro e Princesa param na praça. Algo chama a atenção de Princesa, que sai correndo. Pedro se diverte com a cena: Princesa correndo atrás de um lindo gatinho amarelo. Vou comer sozinho, zomba ele da companheira, mas esta volta rapidamente para junto de Pedro, que faz carinho em sua cabeça e diz:

– Sentiu fome, né companheira?

Cada um comeu seu pão com mussarela, presunto, ovo frito e alface. Hoje a moça foi bem generosa colocando ovo frito. Deus conserve seu emprego. Houve um dia que ela ganhou uma bronca do gerente da padaria. Depois disso, Pedro soube que se soubesse esperar pelo momento certo, como a moça do balcão também esperava, teria seu café da manhã. Aquela
era a primeira vez que recebia seu pão com ovo frito. Princesa também ficou satisfeita e de barriga cheia e já se mostrou alegre para começar o trabalho.

Pedro olhou para o céu e desejou ser aquele dia um dia breve. Os dias poderiam ser contados de acordo com cada refeição que faziam. Agora mesmo, podia virar noite e só amanhecer quando houver comida, pensou
Pedro enquanto jogava a sacola com a logomarca da padaria na lixeira. Ele olhou para Princesa e disse:

– Vamos trabalhar para ter o almoço, minha Princesa.

Ela sai na frente agitando sua cauda alegremente. Aos poucos as luzes do prédio iam se apagando. Na rua, apenas quem saía do metrô. O povo
voltava para seus apartamentos. Outro povo se acomodava nas calçadas, protegidos pelas marquises. Pedro estacionou sua carroça junto ao muro do clube, forrou o lençol sobre o colchão e puxou o cobertor sobre si e Princesa que aguardava já deitada. De uma mochila velha encostada na cabeceira da cama, Pedro tira um pequeno rádio, estica sua antena e o liga.

Ajusta mais uma vez a antena até sumir os ruídos sonoros. Umas vozes soam simultaneamente pelo alto-falante do aparelho. Pedro coloca o rádio por cima da mochila, na altura da sua cabeça. Acende a chama do isqueiro e queima o cigarro. Os faróis de um carro que passa ilumina a baforada do fumo que se mistura ao vapor condensado do hálito. Segundo a moça do tempo, hoje teremos uma das madrugadas mais fria do ano. Pedro solta outra baforada. A rua está escura. O movimento de motos e carros cessou.

Apesar da marquise, Pedro consegue ver parte do céu e das estrelas. Ele fica assim um bom tempo olhando para cima. A marquise parece fazer parte do céu no meio dessa escuridão. Princesa dorme profundamente. A chama do cigarro ilumina o olhar paralisado de Pedro. Baforada. Pedro, o
aljôfar. No rádio, após uma breve intervenção do locutor cumprimentando os ouvintes, as vozes polifônicas dos Bee Gees voltam a cantar: “They were good times/And I wish you were here,/Yes, I wish you were here”.

Simeia Santana, 33, é livreira, historiadora e mãe.

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