Paul B. Preciado e sua epistemologia mutante

Paul B. Preciado e sua epistemologia mutante
O escritor e filósofo Paul B. Preciado em junho de 2017, em Kassel, Alemanha (Foto: Olaf Kosinsky)

 

Mutante é um significante central para refletir sobre o mote que orientou o discurso de Paul B. Preciado em sua conferência de abertura na École de la Cause Freudienne (recentemente publicada na Lacuna – uma revista de psicanálise). Antes de mais nada, é fundamental reconhecer o vigor da instituição que lhe fez o convite. Notar que a escolha implicava criar zonas de tensões e intensos atritos, sempre bem-vindos quando a perspectiva é a de ir mais longe afetiva e intelectualmente. Não era um(a) psicanalista da casa a dirigir-se à plateia, alguém que reiterasse o conhecido feijão com arroz do vocabulário psicanalítico em belas composições gramaticais, capazes de reapresentar conhecidas posições – o que também, diga-se, não é de todo dispensável, pois num momento politicamente difícil como o que estamos vivendo globalmente, temos de rememorar e reinscrever frequentemente o que orienta eticamente a prática e a escuta psicanalíticas e o pensamento articulável em torno delas. Em todo caso, a decisão de convidar Paul B. Preciado demonstra a força a partir da qual a psicanálise se faz viva e aberta aos desdobramentos simbólicos e históricos que exigem uma reelaboração teórica contínua do ofício a que se presta. A presença de Paul B. Preciado naquele contexto implicava colocar o arsenal psicanalítico à prova, reconhecer limites de seu repertório conceitual, conceder lugar de escuta ao Outro, estrangeiro ao campo e capaz de dar corpo ao que se mantém latente ou quase abafado entre nós. Tratou-se, em suma, de uma escolha distanciada de moldes narcísicos.

Por isso, a excelente escolha de convidá-lo deveria ser levada até suas últimas consequências. Invalidar subsequentemente o que Paul B. Preciado trouxe de embaraçoso para a comunidade psicanalítica é gesto menor, pouco suscetível ao que faz borrar a imagem especular das instituições e que poderia abrir importantes veredas clínicas e teóricas para todos nós. Reativar todo o repertório gramatical psicanalítico só para atacar a verdade – sempre não-toda, vale frisar – daquele dizer é, então, perder oportunidade valiosa. Sim, pois colher a verdade que porta um discurso implica estar aberto aos efeitos que ele promove, por mais incômodos que estes possam ser. Algumas mais virulentas, outras mais ponderadas, as respostas dadas por psicanalistas à crítica feita por Preciado apresentaram alguns bons argumentos. Entretanto, o que ressoa também, em grande parte delas, é um certo tom defensivo e da pior espécie. Compreendidos aqui psicanaliticamente, os mecanismos defensivos, não nos esqueçamos, são quase sempre conservadores. Revelam, como se sabe, uma insistência em velhas soluções de compromisso, ineficazes para abarcar o que vibra de inédito nos percursos desejantes.

Pedro Vermelho, o macaco kafkiano, é um mutante. É com ele que Paul B. Preciado se identifica ao performar sua posição diante da plateia de membros da École de la Cause Freudienne, espirituosamente comparada à “Academia das mais altas autoridades científicas”, que aparece no conto escrito em 1917 pelo autor tcheco. Como avatar, Paul B. Preciado mostra os ranços normativos que ainda pairam na abordagem psicanalítica da sexualidade e, por conseguinte, da própria subjetividade. Sua verdade emerge encarnada na metamorfose visível de seu corpo-linguagem. Seu desejo não está apenas impresso nos significantes que emprega, mas no caráter mutante que assume seu corpo-linguagem.

É certo que sempre existirá o argumento da materialidade ou corporeidade da linguagem ou da inexistência de um corpo que esteja destituído das marcas linguísticas. Não se trata de acionar, por conseguinte, a dicotomia corpo/linguagem ou natureza/cultura. Trata-se, isso sim, de escutar as bases sobre as quais se sustentam sua linguagem. A célebre frase de Lacan em “Aturdito”, “que se diga fica esquecido por trás do que se diz naquilo que se ouve”, aponta já para o fato de que o dizer, demonstrável por escapar ao dito que se ouve, tem a capacidade de complexificar e enriquecer a noção mais contemporânea de “lugar de fala. O real que comanda a verdade da enunciação de Preciado não foi colonizado pelos moldes identitários, como muitos psicanalistas insistiram em sugerir. O real de seu dizer está entranhado em cada pedaço de sua carne tecnológica e farmacologicamente modificada, em cada órgão transfigurado, em cada palavra vociferada pelos efeitos fármaco-hormonais. Trata-se de um dizer trans não apenas pelo fato de o portador daquelas palavras ser concretamente um homem trans, mas pelo fato de que sua transmutação subjetiva é ela mesma uma incisão cirúrgica de caráter revolucionário em termos políticos e epistemológicos. Uma política interseccional que emanará de uma conjunção de vozes oprimidas até transfigurar o colorido, o tom, a forma e a estrutura de todas as bases nas quais ainda nos apoiamos. Sim, pois – e agora voltamo-nos à crítica feita por ele à psicanálise – ainda apelamos ao universal e operamos pela sua lógica que, como disse Lacan, sempre se nega em cada expressão singular. O contorno universal – pensado tradicionalmente pelas vias da Lei paterna – é o que dará condições ao sujeito de assumir uma expressão singular, que escapará daquela universalidade, mas que só a partir dela se constituirá.

Embora a tensão dialética entre universal e singular também se faça presente no discurso de Paul B. Preciado, toda sua estrutura materialmente mutante propõe outra lógica. Sua voz metamorfoseada vibra para compor-se com outras vozes mutantes, mostrando que o dito e o dizer do inconsciente podem mais do que Freud ou Lacan pensaram. Embora suas críticas tenham sido contundentes, Paul B. Preciado não fez da crítica à Lei que orienta as instituições de psicanálise seu alvo principal. Seu dizer emanado de seu corpo trans já carrega novas ferramentas, concede corpo a outra epistemologia. Não é uma provocação sobre a falta de democracia das instituições psicanalíticas que está em jogo quando ele afirma: “não sei se vale a pena que se diga também bom dia a todos aqueles que não são nem damas nem cavalheiros, porque creio que não há entre vocês alguém que haja renunciado legal e publicamente à diferença sexual e que tenha sido aceito como psicanalista”. Fosse este o caso, bastaria proceder a um programa de inclusão de minorias. Entretanto, o que a ausência completa de corpos trans ou queer numa plateia inteira de psicanalistas revela é a inexistência de ferramentas hoje imprescindíveis para pensar rumos civilizatórios alternativos aos estabelecidos pelos pilares patriarcal-heteronormativo e colonizador-europeu. Tais ferramentas não são trazidas apenas numa liberdade discursiva do desejo. É necessário que o corpo que se movimenta por este mundo e a linguagem que atravessa a carne do sujeito também estejam impregnadas de tais transfigurações.

Ainda que a psicanálise seja um saber que coloque em suspensão alguns fundamentos patriarcais, não seria muito honesto negar que a epistemologia psicanalítica se rende a tais rudimentos carcomidos. O pensamento em torno da noção de complexo de Édipo possui, de fato, em Freud, fortes conotações patriarcais. É ao dado anatômico que Freud remete a possibilidade de fazer uma travessia do complexo de Édipo que seja compatível com as tarefas éticas e estéticas implicadas na cultura e, por conseguinte, no campo do que pode ser tomado como público. Não é, contudo, à perpetuação do patriarcado que se resume o pensamento envolvido no complexo de Édipo. Em seu coração situa-se o desejo diante do caráter traumático da sexualidade, da ruptura inerente ao fato de que falamos e da necessidade, experimentada pela criança, de tomar alguma distância com relação a seus primeiros objetos de amor, construídos e apropriados numa profunda relação de dependência. Ao estruturalizar o Édipo e pensar funções em vez de indivíduos, Lacan avança em relação a uma desnaturalização da experiência que não apenas é mais coerente com a forma pela qual narramos nossos desejos, mas também mais rica do ponto de vista político. Trata-se de algo que também lhe permite reconhecer a interdição como um expediente de que nos valemos para lidar com o desamparo que marca a situação de vida na qual somos lançadas. Porém, o que Lacan permitiu enxergar ainda não é suficiente porque, ao caracterizar um certo gozo como masculino e outro como feminino, ele preserva a equivalência entre cultura e masculinidade. E é nesse sentido e nesse lugar preciso de convocar à destituição dessa equivalência – convocação que, lembremos, Preciado não é o primeiro a fazer – que, para nós, se situa a força de sua fala.

 Jacques Lacan (Divulgação)
Ao caracterizar um certo gozo como masculino e outro como feminino, Lacan preserva a equivalência entre cultura e masculinidade (Foto: Reprodução)

É certo que a equivalência entre cultura e masculinidade precisaria ser desdobrada. Aqui, porém, basta dizer que, para Lacan, ninguém tem o falo, exceto a cultura. Ou seja, a cultura, ela mesma, é sempre lida pelo registro fálico. Isso se expressa de modo central nas fórmulas da sexuação, propostas pelo psicanalista francês em 1973, no Seminário 20.

Se nos referimos apenas ao primeiro nível de sua escrita, vemos que elas trazem, de cada lado (lado Homem e lado Mulher), uma proposição quantificada existencialmente e outra quantificada universalmente. As universais trazem os seguintes conteúdos, respectivamente: para todo x, x é Φ (a letra grega escreve aqui a função predicativa “… ser submetido à castração”); do lado mulher: não todo x é Φ. Seguindo o léxico da lógica, tem-se, portanto, que as universais “para todo x, x é submetido à castração”; “não todo x é submetido à castração” (Lacan altera aqui o modo de usar a negação com o universal). São essas proposições universais que fazem parte, então, da distinção entre Gozo fálico (Homem) e Gozo Outro (Mulher).

Vale lembrar que, de acordo com Lacan, não há realidade pré-discursiva e, por conseguinte, os significantes ali empregados – Homem e Mulher – cumpririam funções de semblante, isto é, tais substantivos não teriam quaisquer correspondências com a anatomia ou algum tipo de caráter essencialista dos sujeitos. Grosso modo, essas formulações lógicas podem ser traduzidas nos seguintes termos comuns: a articulação do homem se dá, de um lado, pela exclusividade do Gozo fálico e, de outro, pelo conjunto de todos os homens castrados. O conjunto de todos os homens equiparáveis em sua condição de castração só pode se moldar por uma exceção à regra, isto é, por alguém que emerge num lugar fora e dentro do conjunto categorial universal – um homem não-castrado. Na psicanálise, a figura não-castrada é mítica e, portanto, inexistente. Trata-se do Pai Primevo da horda primitiva, tal como pensada por Freud em Totem e tabu.

Na composição lógica da mulher, não se trataria mais do Gozo fálico, mas sim do Gozo Outro ou Gozo feminino. Foge-se aqui da lógica dialética entre conjunto ou classe categorial de todos os homens castrados (universal) e a exceção de um Pai Primevo não-castrado em seu Gozo (particular). O Gozo Outro seria, então, não-todo e giraria em torno do falo, significante primordial. Com tal articulação, Lacan supõe estremecer a noção de mulher, afirmando que “Ⱥ mulher não existe”. Para ele, tal axioma busca evidenciar o fato de que não haveria como falar d’A mulher no interior de um modelo universal, tal como vimos na formulação do conjunto de homens equivalentes na condição castrada. No caso da mulher, haveria apenas a singularidade, capaz de organizar o feminino a cada vez. Se o homem deposita na mulher uma função de objeto causa do desejo (objeto a), aquilo que o fisga e o convoca, a mulher tomaria o homem no lugar de falo. Daí advir o outro axioma lacaniano, segundo o qual, “a relação sexual não existe” – nesse desajuste não há encontro que esteja apto a formar Um.

Seria possível desmontar de diferentes modos esses preceitos que congelam logicamente certos problemas históricos e ideologicamente complicados para os atuais debates em torno da questão de gênero. A crítica mais óbvia e imediata que poderia ser formulada é: como o psicanalista francês, que concedeu lugar central à linguagem e ao impacto dos significantes para o sujeito do desejo, pode utilizar do evasivo argumento de que emprega os significantes Homem e Mulher quase aleatoriamente, visando tratar de diferentes posições do sujeito? De todo modo, independentemente de quem as viva – Homem, Mulher, Trans, Bissexual, Intersexo, Queer, Gay, Lésbica –, ambas as modalidades de Gozo – o fálico e o Outro – são formulações abstratas que reiteram, sim, a subdivisão binária do patriarcado. A crítica de Preciado não atinge, por conseguinte, apenas corpos héteros, mas a reprodução dos velhos moldes de poder e de Gozo que ocorrem dentro desses registros lógicos nas mais variegadas formas de semblantes. Seguindo por aí, outra crítica incontornável é a já mencionada correspondência entre falo e cultura ou, em termos mais precisos, o fato de que, para Lacan, só a cultura tem o falo.  Ora, não existe aí outro fundamento para a articulação que ele faz entre o falo, pela via da castração, e o termo “todo” a não ser o próprio fato contingente (que, portanto, não se deduz) da prevalência histórica do patriarcado. As coisas se passam aqui como se Lacan transformasse uma contingência histórica em necessidade lógica.

Por isso, é decisivo para a psicanálise, hoje, conseguir enxergar e encontrar formas de lidar com a tarefa que Preciado nomeou como “despatriarcalização”. De um lado, disso depende sua sobrevivência. De outro, essa sobrevivência é fundamental porque fazer de conta que a divisão da subjetividade não existe corresponde talvez aos piores dados de partida e às mais indesejáveis formas de fazê-la operar.

Alheio a esse engessamento lógico que reitera modelos patriarcais e à ideia de que a inexistência de realidade pré-discursiva implique necessariamente a ausência de corpo-carne, todo ele, entranhado de linguagem e técnica, Preciado carrega na materialidade transfigurada discursiva e tecnologicamente nem um homem, nem uma mulher, mas sua condição mutante ou trans, portando uma verdade Outra, que escapa às regras daquela lógica constantemente torcida para manter alguns de nossos velhos lugares.


Alessandra Martins Parente, psicanalista, doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP

Léa Silveira é professora de Filosofia na UFLA e doutora em Filosofia pela UFsCar

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