Sobreviver é preciso no mundo anticolonial: Patrícia Lino e outros lançamentos

Sobreviver é preciso no mundo anticolonial: Patrícia Lino e outros lançamentos

 

Para ler O kit de sobrevivência do descobridor português no mundo anticolonial, de Patrícia Lino, você não precisa de kit nenhum. Também não precisa ser português, nem estar numa situação de perigo iminente. O que você precisa é estar disposto a completar uns quebra-cabeças em que participam alguns fios da história colonial portuguesa, que se parecem muito com a história de outros países colonizadores, e uma sensibilidade disposta a embarcar (não numa caravela, claro) na aventura (sem pretensões de descobridor) de rir. Isso tudo sabendo que quando se ri diante de uma ironia ou uma paródia, doem certas partes do corpo, talvez o coração ou o fígado, mas, se ainda acreditamos em Descartes, talvez a glândula pineal, onde o filósofo francês dizia que se instalava a alma e se formavam nossos pensamentos. Ou seja, o que é quase indispensável é pensar, compreender que os brinquedos que Patrícia Lino nos apresenta no seu kit têm algumas pontas afiadas. E digo quase indispensável, porque às vezes a força desses objetos criados por ela nos atinge sem dar tempo para o pensamento se formar e nos marca com o carimbo mental da imagem.

Por exemplo, confesso que as “Caravelas” da “marca Era-Gâmica” ficaram cinzeladas no meu cérebro. O trocadilho linguístico do título levado à imagem e ali desenvolvido com os rostos dos “barões assinalados” grudados no corpo de gordas velas de ar eclesiástico possui uma grande força crítica e mnemônica. O rebaixamento da solenidade da história e o correspondente orgulho nacional a um produto de consumo corriqueiro, supérfluo e ornamental, quase de souvenir turístico, produz um sorriso. Os detalhes que vêm nos textos “O que são as caravelas” e “Como usar as caravelas”, como a associação de cada grande navegador português a um aroma da vela, a afirmação de que se trata de “um item espiritual de baixo custo”, decorativo, que pode ser colocado em “áreas internas ou externas e varandas”, em momentos especiais como Natal e aniversários, e o imperativo “acenda sua caravela e relaxe” contribuem ao nosso sorriso. Mas é um sorriso com um certo amargor porque denuncia a construção da história nacional sobre os alicerces das descobertas marítimas e a expansão colonial, como se fossem fatos transparentes, limpos, incontestáveis, isentos de atropelos, injustiças, guerra e racismo. Como se essa história, entronizada como verdade, não se pudesse olhar no espelho da reconquista, da expulsão dos mouros das terras portuguesas. Depois dessa breve descrição da peça “Caravelas” fica claro que o livro de Patrícia Lino é um conjunto de artefatos literários, que chamarei de peças poéticas porque têm uma dinâmica poética, compostos cada um por três elementos: uma imagem e dois textos.

Mas nem todos eles possuem a claridade de objetos palpáveis de consumo. “Confortinho universal” é um “movimento filosófico”, nas palavras da autora, “que surgiu em Lisboa nos anos trinta e parte do princípio de que o mundo se rege pelas máximas formuladas pelos pensadores do século 15 ao século 18 e executadas pelos missionários da fé católica nas províncias ultramarinas”. O “Confortinho universal” ou “Catequismo aristotélico” está assentado em dez máximas, das quais menciono três para dar uma ideia delas: “O Homem é um animal político”, “O animal não é político, logo não tem alma” e “O Homem selvagem não é civilizado, logo não tem alma”. Na realidade, Patrícia aproveita esses produtos para expor conceitos da crítica anticolonialista. A peça “A indiferença de Ocidente” é outro produto impalpável, pois trata-se de “uma técnica artística” baseada numa perspectiva colonialista ao “retratar as comunidades originárias”. O que Patrícia quer nos comunicar é como, subrepticiamente, essa perspectiva se reproduz, perpetua e aproveita a “viralidade das imagens”, apagando os limites entre o que é tido como positivo e como negativo. O mais engraçado desse poema está nas instruções de uso: “1. Você já o usa. Só não tinha, muito provavelmente, um nome pra ela”. É como se essa indiferença se espalhasse, apoiada naquilo que nos anos 1960 e 1970 chamou muito a atenção dos consumidores, e que se denominava “publicidade subliminal”.

Outros itens do kit da Patrícia são igualmente veículos da sua exposição dos pontos fracos das inércias coloniais e das mazelas dos universalismos. No entanto, existem alguns detalhes que certamente fogem aos leitores não portugueses. Por exemplo, “Museu para onde vão todas as coisas fascistas”, em que aparecem alguns episódios da história de Moçambique, como a da estátua do ditador Salazar em Maputo, que teve sua cabeça decepada, na entrada do antigo Liceu Salazar, hoje Liceu Josina Michel, importante heroína da independência desse país. Também são mencionados uma “zaragata bombástica” ocorrida nos anos 1970, depois da Revolução dos Cravos, em Santa Comba Dao, cidade onde nasceu Salazar, e uma fotografia de Eduardo Gageiro, em que um soldado remove o retrato do “grande líder”. Esta peça é um convite para olhar mais de perto a história da ditadura de Salazar, que durou de 1933 a 1975, talvez a mais longa na história desse tipo de regimes, e revisar especialmente sua política colonial.

“O fiel da balança” (catalogado como “tecnologia” e “modus vivendi e operandi”) tem uma especial importância. Como aparece em sua explicação, serve para relativizar qualquer tomada de posição que questione a estrutura do poder colonial, imperial e aristocrático, e inclui no “instrutivo” uma série de “estruturas frásicas” que servem para argumentar. Entre elas estão: não empatizar com nenhum ponto do oponente, falar de si próprio diminuindo a importância do caso exposto pelo oponente e dizendo que algo semelhante aconteceu com você, acusar o oponente de extremismo ideológico etc. É esse arsenal que permite entender a bacia metálica enfeitada com o escudo da União Nacional do salazarismo, chamada “Narcísica”, pois uma das estratégias contra os argumentos anticolonialistas é o individualismo narcisista.

Uma das peças cuja referência me fugiu é “Poemário”. A epígrafe é uma engenhosa modificação de dois versos do poema “Mar português” do livro Mensagem de Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal” que se transformam em “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas dos colonizados”. No entanto, não achei a origem direta do título “Sobre a alma peregrina”, que aparece na imagem. Estará baseada na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto? É outro convite para me aprofundar na história colonial de Portugal.

Não é possível comentar todas as 40 peças deste livro. Mencionarei só outras mais. Em algumas delas, os vínculos com outros temas de discriminação estão presentes. Cito o muito engraçado “Remendo imperial personalizado”, que serve para “tapar buracos” e tem bordado um barquinho de papel e a lenda “O império dos homens”; a aplicação de celular “Race Card”, que ajuda o usuário a ser reconhecido como branco, especialmente no hemisfério norte, mediante a tradução da frase “eu também sou branco” a 25 línguas (é complementado pelo “Diploma de branquitude”); e a “Pulseira homoafetiva”, símbolo de companheirismo exclusivamente masculino.

Poderia afirmar que “Portugalidade”, “História docinha” e “Manual da língua de Camões” são peças que pertencem aproximadamente à mesma família de discursos de apropriação e manipulação que discriminam os colonizados, suas versões da história e sua peculiar assimilação da língua. Por último, quero mencionar duas que me fizeram rir muito pelo engenho paródico e irônico de Patrícia Lino. Uma é “Saudomasoquismo”, baseado nos conceitos de saudosismo ideado pelo poeta Teixeira de Pascoaes, autor também citado por Patrícia, a propósito do seu clássico A arte de ser português (1915), e de saudade, sentimento tido como indiscutivelmente português e identitário. Outra é “Sebastiana”, “uma máquina de fazer nevoeiro que propicia […] o reaparecimento de Dom Sebastião”.

Certamente esse último está cifrado para aqueles que não conhecem um pouco da história de Portugal. No entanto, quero sublinhar que, como adiantei, o kit de Patrícia Lino não está limitado aos leitores portugueses. Sua capacidade de corrosão, através da paródia, do sarcasmo e da ironia, bem pode ser aplicada a outros discursos manipuladores das identidades nacionalistas, que incluem objetos simbólicos das mais variadas naturezas. Penso no México e nas frases “nuestras bellas tradiciones” e “como México no hay dos”, e no “Día de muertos”, com suas caveirinhas de açúcar, e imediatamente começa a fervilhar na minha cabeça uma tentação quase irrefreável de me inspirar no livro de Patrícia Lino.

 

Rodolfo Mata é doutor em Literatura Iberoamericana pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), onde também é professor.


por Redação

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