Passagem

Passagem
(Foto: Jaredd Craig/Unsplash)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


Lembro que era uma tarde fria e cinzenta no sudeste inglês. No quarto, o mapa do “Brazil” aberto no colo e a decisão silenciosa que instigava o desejo de transformar aqueles nomes impressos no papel em futuras memórias de viagem: iria um dia viajar de barco pelo rio Amazonas.

Anos mais tarde, no alto do barco que percorria o rio desejado, me dei conta – tentando superar a preguiça em fazer qualquer coisa que não fosse fazer nada -, que a tarefa de organizar a narrativa de uma viagem em uma fala “coerente” pressupõe um recorte tão pessoal quanto provavelmente desonesto.

Pessoal porque nossos interesses e olhares nos limitam a sentir e observar o que podemos ou queremos; desonesto porque é preciso contar histórias curiosas e impressionantes. Na volta, é preciso sentir aquela pena prazerosa dos que não foram, dos que não viram.

Por isso, sorrir forçosa e rapidamente para a “selfie” tirada às pressas é elaborar, no presente, o recorte que servirá, no futuro, para romantizar o que se tornará passado. Mostrar que se esteve ali, talvez para poupar a fala, mas também para se ver onde os outros não estão. E para lembrar.

No alto do barco lento, vi em silêncio as casas simples de madeira, as crianças pequenas que remavam sozinhas em suas pequenas canoas, os ribeirinhos que vez ou outra nos acenavam. Vi o reflexo da mata na água que balançava os barquinhos ao redor, vi as árvores imponentes que nos faziam pequenos, vi a luz dourada do final da tarde que deixa tudo mais fotogênico. Ali, todos passávamos e nos tornávamos passado uns dos outros.

Em Belém, na Ilha de Marajó, em Alter do Chão, em Manaus. Ouvi e conversei com as pessoas desses lugares ou que por ali passavam, sabendo que iria esquecer da maioria delas, sabendo que tampouco as fotos que não tirei iriam preencher as histórias que não poderia lembrar. As imagens poderiam, pior, distorcer a totalidade cada vez menor do que sobrava como lembrança daquela vivência ainda lúcida e substituir lentamente o que ainda pudesse ser lembrado espontaneamente.

Podemos escrever e mudar o formato do recorte, mas como os barcos que iam rio acima, rio abaixo, passamos.

Edson Prudencio, 41, escreve de São Paulo. É professor de inglês e
espanhol, além de fotógrafo. Gosta de viajar sozinho, pois esta é a
sua maneira mais inspiradora de estar só.

 

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