A frágil minoria parlamentar do PT e o paradoxo da democracia

A frágil minoria parlamentar do PT e o paradoxo da democracia
(Foto: Ricardo Stuckert/PR)

 

A jornalista Mônica Bergamo, que tem excelentes fontes no governo do PT, publicou esta semana na Folha de S.Paulo que, para uma parte importante dos membros mais influentes do governo, o presidente tem que entender que governa com uma frágil minoria parlamentar. E, consequentemente, terá que entregar anéis se não quiser perder os dedos.

Não é uma revelação animadora para a esquerda ou para os progressistas, que vivem de um duplo autoengano, forjado na tensa vitória presidencial de 2022. A primeira ilusão é a de que Lula teria vencido as eleições. Não venceu. Havia duas eleições federais sendo disputadas em outubro, Lula ganhou uma, a oposição ganhou a outra. Não foi obra do destino, resultado de uma conspiração astral ou política nem decorrência de qualquer causa esotérica. Esse paradoxo foi deliberadamente criado pelos eleitores brasileiros, ao dar a Presidência da República a um partido de esquerda e entregar a maioria no Congresso a partidos da direita programática (bolsonarista) e da direita fisiológica (lirista). Como as eleições são simultâneas, não dá nem para tentar ajustar a decisão para um resultado mais coerente, como acontece em outros sistemas eleitorais.

A segunda ilusão afeta sobretudo os identitários de esquerda, que são a ponta de lança dos progressistas, que há meses fazem festa e pressão por estarem convencidos de que, vencida a eleição e depois de anos de conservadorismo atroz, havia chegado enfim a hora de implementar as suas pautas. Afinal, a eleição que conta, a presidencial, foi vencida e o vencedor fica com tudo, bastando para moldar o Estado assim ou assado apenas a famosa “vontade política”. Errado.

O fato é que o governo tem garantidos hoje na Câmara dos Deputados algo em torno de 130 votos. Não controla mais que 25% dos votos naquela casa legislativa. Para se ter uma ideia de proporção, diz-se que o superbloco de Lira na Câmara conta hoje com 173 votos. Com os números que tem, Lula não encara nem a Frente Parlamentar Evangélica, que se estima que conte com 132 votos de deputados. Só o PL, antigovernista até a medula, conta com 99 deputados.

E a bancada dos identitários de esquerda conta com quantos votos? 10? 15? Nos anos em que a esquerda identitária avançava velozmente na conquista dos departamentos universitários, do campo artístico e cultural, das redações dos jornais e das feiras literárias, a direita identitária fazia bancadas nas casas legislativas. E com tamanha eficácia que, em 2023, tem mais votos na Câmara do que o partido que elegeu o presidente da República. Os ambientalistas padecem da mesma dificuldade de traduzir em mandatos a sua indignação e a sua justa preocupação com o futuro do planeta e do país. A bancada antiambientalista é enorme, mas a da pauta ambiental, que tamanho tem?

Não tem conta que feche, não tem quem consiga efetivamente governar com ¼ dos votos. Se fôssemos uma democracia parlamentar, esse gabinete seria considerado um morto-vivo e o governo estaria com as horas contadas. Uma minoria desta dimensão dificilmente seria capaz de implementar um governo.

Há alguns anos, isso seria um inconveniente, mas não difícil de resolver. Caneta e grana sanavam geralmente o problema, desde que o governo se mantivesse popular depois da eleição. No início da década de 2000, o primeiro governo Lula, descrente de que poderia conseguir o apoio de um parlamento venal e fisiológico convencendo deputados e senadores da qualidade de suas propostas e argumentos, comprou esse apoio em suaves prestações mensais, conforme descobrimos depois quando explodiu o escândalo do Mensalão.

Na década de 1990 e seguintes, a farta distribuição de cargos para acomodar interesses e aliados dos parlamentares – além de posições em ministérios, órgãos do Estado com abundante acesso ao dinheiro público e com potencialidade para cacifar eleitoralmente os seus titulares – comprava todo o apoio de que um presidente precisasse para tocar as suas políticas e os seus projetos de leis e regulamentações. Basicamente, o presidente concedia aos parlamentares acesso aos privilégios do Poder Executivo em troca do controle do Poder Legislativo. Para governar, portanto, não se precisava de uma significativa e consistente maioria parlamentar saída das urnas. Apoio comprava-se com grana, cargo ou outra moeda corrente.

Muita coisa mudou na última década no balanço de poder entre o Congresso, principalmente a Câmara e o Executivo. Os parlamentares ainda se amarram em dinheiro e participação no Poder Executivo, mas não querem, chapéu na mão, passar pelo constrangimento da barganha de uns trocados ou uns carguinhos em troca de votos no balcão de negociação com o governo às vésperas de eleições importantes.

Em dez anos, o Legislativo conseguiu garantir um acesso praticamente automático ao orçamento público, mediado não mais pelo governo, mas pelos presidentes das Casas Legislativas federais. Nos últimos anos, vimos a Presidência da Câmara dos Deputados se transformar num dos cargos mais poderosos da República, controlando bancadas, movendo votos, mudando ritos e regras conforme os seus interesses e, sobretudo, aprovando leis que concedem ainda mais prerrogativas. E decidindo sozinha se aceita, ou não, pedidos de impeachment de presidentes da República.

É assim que um deputado federal eleito com pouco mais de 200 mil votos pode impor a própria agenda a um presidente eleito por mais de 60 milhões. É do jogo, são as novas regras pelas quais ele é jogado, só o voto popular poderia alterar esse balanço de poder e ele foi numa direção contrária ao governo.

Por enquanto, quem tem maioria no Congresso, quer dizer, Lira e a direita programática, vai dando o rumo às coisas. Querem, na expressão citada por Bergamo, “esvaziar” os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas? Conseguirão. E caso se voltem contra o PL 2630 porque acham que ele é sobre fake news, não o aprovarão. Lira quer o arcabouço fiscal? Lira negocia e consegue. Lira, não Lula.

E o governo? Comporta-se no Congresso como a minoria que, de fato, é: negocia, faz pressão, barganha, corre à opinião pública pedindo apoio, recorre ao STF, bota a boca no mundo. O que mais poderia fazer uma vez que saiu das urnas como minoria parlamentar? E há de ficar contente se, com o pagamento em cargos, verbas e poder, o superbloco de Lira continuar eventualmente sendo alugado ao governo, quando do seu interesse, em vez de se juntar com a direita programática. Neste último caso, nem a sobrevivência do mandato de Lula estaria garantida.

Sentar e chorar, contudo, não é uma opção para a Administração Lula ante a possibilidade de governar com uma minoria parlamentar tão pouco competitiva. Principalmente porque o apoio da opinião pública e a sua popularidade são os únicos freios reais aos avanços do Congresso sobre seu mandato e, eventualmente, sobre suas pautas. Daí a importância-chave da comunicação do governo e da comunicação presidencial para administrar a impressão e os sentimentos públicos.

Daí a importância de pelo menos garantir as entregas nos aspectos que efetivamente impactem o humor e o sentimento do público de que a sua vida melhorou com Lula. E quem tiver outras pautas, expectativas ou esperanças acerca das entregas que este governo, a seu ver, deveria fazer, que procure identificar de onde poderia provir os votos parlamentares em seu favor. Pois olhando friamente o tamanho das bancadas, sinceramente, não há muito o que se esperar. Quem tem mandatos é que governa. A democracia, meus amigos, nem sempre entrega o que a gente quer.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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