Os cachorros latem cada vez menos

Os cachorros latem cada vez menos
Foto: Christian Lue/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”. 


Ampliar o espaço de contato, diminuir a distância dos móveis da sala. Quem sabe, comprar mais uma poltrona? Varrer o tapete pesado que aquece os passos solitários deste inverno. Reinstalar o telefone fixo, ouvi-lo tocar de manhã cedo, atender o telemarketing com fingido interesse, abrir o jornal com o cinismo do café da manhã recém passado, as contas todas em dia, e-mails de spam lidos e relidos, o movimento de quem estica os braços para alongar-se, ajeita a coluna que estala horas debruçada sobre o computador de trabalho, reuniões agendadas. Tem-se trabalhado como nunca, tem-se exercitado o desejo de vida como nunca, também. Análises demoradas em frente à TV ligada em um programa qualquer. Há um interesse em não ter interesse em absolutamente nada nesses tempos, sobreviver sobrepõe-se aos desejos, ocupa os sonhos, oculta as cartas que o carteiro deixou de buscar. Nesse segundo semestre, as janelas e sacadas vizinhas ficaram estranhamente desocupadas. Durante as semanas em que acordei às 5 da manhã para fazer absolutamente nada mais do que acordar cedo e abrir as cortinas da sala, deixar o ar gélido das manhãs cinzas e silenciosas entrar pela janela, acompanhei a rotina do vizinho ciclista. Ele fixou sua bicicleta de corrida na sacada do apartamento. Trajado sempre com sua roupa de pedalar por aí com algum objetivo estampado no peito, dobrava enquanto erguia e descia os joelhos em ritmo acelerado durante três horas a fio. Todos os dias um sobe e desce de joelhos até que desisti de acordar cedo e também parei de passar café — o fazia somente na tentativa de reprogramar cérebro e estômago que ainda enjoam ao mínimo odor do grão torrado alcançar a sala e impregnar suas paredes, esses cabelos, muitas lembranças. Observo que todos os vizinhos do prédio em frente silenciam pendentes de planos dia após dia. A bicicleta já não ocupa toda a varanda. A varanda, agora, está totalmente vazia. Não há mais rotina de colocar as roupas da bebê na máquina, nem servir comida e trocar a água do cachorro que também parece já não mais espiar a rua pelos vidros da sacada. As varandas vizinhas estão todas vazias. Faço contas de cabeça se não me deixei perceber o caminhão de mudanças levar suas tralhas de ciclista ou se me escapou ler de seus lábios distantes quando deu a notícia em casa de que o trabalho o convocou para uma viagem súbita, em meio ao descompasso da respiração e eu não o vi sair na madrugada seguinte, segurando as malas nos braços para não acordar a neném, não afobar o cãozinho que agora me é vaga lembrança. Os cachorros da vizinhança latem cada vez menos, ouço ainda alguns uivos quando as luzes dos postes acendem, dou por mim como queixas, talvez súplicas por atenção, um cuidado qualquer de uma mão pendente que encoste o dorso irisado insistente em manter vivo a memória quente do gesto; e me debruço sobre a janela com vista para o noturno dos sonhos todos cerrados e finjo cinismo ao procurar estrelas no céu daqui.

Fabíola Weykamp, Pelotas-RS. Professora e revisora; Colunista e Editora convidada da Revista SubVersa, tem dois livros de poemas sobre solidão publicados.

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