Sobre a organização da vida e os tempos de trabalho constituinte, uma reflexão feminista

Sobre a organização da vida e os tempos de trabalho constituinte, uma reflexão feminista

 

por Javiera Manzi A., Irune Martinez e Andrea Salazar

 

Nas últimas semanas, assistimos a uma aceleração da temporalidade constituinte, do Chile, marcada por jornadas de trabalho que duram até o amanhecer. Escrevemos essas linhas porque, como feministas, a imposição do mandato de uma ética sacrificial e hiperprodutivista como condição desse processo parece insustentável, excludente e contrária a uma política de cuidado.

Nas redes sociais vemos os e as constituintes responderem, de forma acrítica, ao roteiro manejado e amplamente difundido pela direita: na Convenção não se trabalha. Longe disso, durante estas semanas os vimos dotar-se de condições indispensáveis ​​ao seu funcionamento, construindo as bases para um processo marcado pela descentralização, pela plurinacionalidade, pela defesa dos direitos humanos e da natureza, pela paridade substantiva e pela progressiva democratização do órgão.

A preocupação com a legitimidade do processo tem marcado a exigência de um ritmo de trabalho que ignora e se impõe nos tempos vitais e deliberativos dos povos, comunidades e ecossistemas. Correndo no ritmo neoliberal, deixam de lado (mais uma vez) aquelas pessoas que cuidam, os corpos enfermos e as pessoas idosas, a vulnerabilidade de todos os corpos, inclusive, dos coletivos. Na perspectiva da participação popular incidental, não é possível sustentar um processo com ritmos que impeçam a coletivização da reflexão constituinte com seus espaços mandamentais. Do contrário, será doravante e irreversivelmente um dos maiores triunfos dos partidos da ordem neoliberal: a naturalização de seus tempos de exclusão, acumulação e despolitização.

Precisamente porque o pessoal é altamente político, o cuidado não pode continuar a ser sustentado como uma preocupação individual ou fora da esfera pública. Como se cuida de outras pessoas quando se está em sessão até às 2h da manhã? Como as pessoas que deliberam até às 4h da manhã cuidam de si mesmas? Quando os e as técnico/as, funcionárias e secretárias do ex-congresso, as equipes constituintes, as e os jornalistas e os trabalhadoras da mídia descansam quando a Convenção parece nunca parar? Como se sustentam os processos de reflexão coletiva quando se debate sem descanso?

A centralidade com que se instalou uma abordagem criteriosa na regulamentação, na reorganização orçamentária e nas estratégias de participação popular são condições indispensáveis ​​para avançar no aprofundamento democrático de um espaço não precário. Isso implica partir da base do reconhecimento irrestrito dos direitos trabalhistas que foram conquistados com a vitória da classe trabalhadora e que hoje são negados aos e às trabalhadoras da Convenção. Falamos também de condições dignas para todos os empregos envolvidos, falamos do reconhecimento do trabalho não remunerado que as mulheres, principalmente, fazem e que se torna uma segunda jornada, das infra-estruturas que estão disponíveis para a socialização destes empregos reprodutivos e horários de trabalho que permitem tempos seguros de descanso, encontro e recreação, permitindo uma dedicação ao cuidado e ao carinho, momentos essenciais para o desenvolvimento da reflexão e do imaginário político.

Voltando ao que escreveu a socióloga chilena Julieta Kirkwood nos anos 1980, “a realização da política [feminista] é também repensar a organização da vida”, evidenciando a impossibilidade do exercício de desmantelamento da institucionalidade neoliberal em um contexto de imposição da temporalidade capitalista. Aprofundar o impulso transformador, que nos convoca a desdobrar dentro e fora da Convenção, requer democratizar todo o processo constituinte, orientando tanto o resultado final do trabalho quanto as formas como ele é produzido. Diante disso, nossa tarefa continua polêmica e movimentando todas as receitas conhecidas para construir formas de organização do trabalho político que prefigurem o desejo por outra vida possível.

Este texto é resultado de
uma parceria entre a Revista
Cult e a La Laboratoria:
espacio transnacional de
investigación feminista

 

Javiera Manzi A., Irune Martinez e Andrea Salazar são membras da Coordinadora Feminista 8M – Chile.


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