Onde está Olavo de Carvalho?

Onde está Olavo de Carvalho?
(Foto: Reprodução/Twitter)

 

Em dezembro de 2019, apresentei um trabalho sobre Olavo de Carvalho em um congresso de sociologia. Li a maior parte de seus livros, assisti a vídeos no YouTube, acompanhava suas publicações no Facebook e Twitter. Após a vitória de Bolsonaro, não apenas eu, mas também outras pessoas se espantaram e procuraram compreender que diabos era essa figura incomodamente presente na política brasileira. Embora menções a Olavo fossem mais visíveis desde 2015, nas manifestações anti-Dilma (quem se lembra dos cartazes “Olavo tem razão”?), a partir da chegada da extrema-direita ao poder suas baforadas empestearam o ar do dia a dia.

Já havia um considerável volume de textos críticos a respeito de Olavo de Carvalho. A maior parte deles, no entanto, procedia por desqualificações: guru, astrólogo, ideólogo, mentiroso, grosseiro, canalha, e por aí vai. O problema é que o efeito desses juízos (juízos morais, muitas vezes), além de gerar desconhecimento a respeito do fenômeno, reforça o que pensa Olavo de Carvalho e seus seguidores sobre seus adversários: uma esquerda essencialmente canalha só poderia chamar-me de canalha, diria ele. Olavo e olavetes permanecem convictos de suas posições. Por outro lado, as análises que aspiravam a refutar pontualmente seus argumentos produziam o mesmo efeito, porém invertido: confirmavam o acerto das críticas, mas pareciam deixar inalterado o arranjo discursivo olavista e sua performance – o que João Cezar de Castro Rocha chamou de “sistemas de crenças Olavo de Carvalho” (Guerra cultural e retórica do ódio, Caminhos, 2021). Desta vez, eram os adversários que saíam confirmados em suas posições, como se dissessem: está aí, as ideias de Olavo de Carvalho não se sustentam, é um sofista – como, aliás, sempre soubemos. A sensação que tais contendas passam é a de uma eterna e mútua incompreensão, como se a cada vez a discussão nunca fosse ao ponto. Um inferno.

Falando nisso, Olavo de Carvalho morreu, mas, como muitas vezes disseram, o olavismo vai ficar. Basta considerar o boom editorial de direita ou as produções da Brasil Paralelo, cujos documentários revisionistas e de franca inspiração olavista possuem milhões e milhões de visualizações. Assim como o bolsonarismo permanecerá para além da (esperamos) derrota eleitoral de Jair Bolsonaro, o olavismo perdurará em corações, mentes e instituições.

Penso que o olho do furacão de controvérsias muitas vezes contraproducentes sobre esse tema reside na atribuição ou na recusa do título de filósofo a Olavo de Carvalho. Não importa quantos xingamentos lhe sejam devolvidos, seus admiradores continuarão a reconhecê-lo como filósofo, lerão seus textos como textos de filosofia, assistirão às suas aulas como aulas de filosofia. Na verdade, é um pouco absurdo considerar que uma pequena multidão de brasileiras e brasileiros seja burra por não conseguir discernir o que seja verdadeiramente a filosofia do que não o é: desde tempos imemoriais não há definição unívoca para a filosofia. O que importa, eu penso, é compreender o fenômeno e os sentidos com que circula, a fim de criticá-lo e disputá-lo. Concedido o título de filósofo a Olavo de Carvalho – título alcançado por qualquer pessoa que escreva textos dentro do gênero “filosofia”, simples assim – resta, no entanto, um longo caminho a percorrer.

É muito evidente, pelos anos de 1990, a maneira pela qual Olavo de Carvalho buscava desesperadamente ser reconhecido como filósofo pelo polo mais prestigiado da filosofia no Brasil. Isso pode ser visto em suas falas e também em seus livros. Posteriormente desiludido dessa possibilidade, passa a construir para si uma imagem autoral negativa, ou seja, a todo o momento procurando se definir como não sendo um intelectual universitário – o que revela, a despeito de sua vontade, uma dependência essencial com o que considera seu inimigo. A obsessão com o oculto comunismo da esquerda encastelada nas universidades possui também esse sentido de construir uma alteridade da qual, no entanto, aspirava fazer parte.

É interessante considerar que, embora desse ares de isolamento e reclusão, não tendo nunca recebido reconhecimento da filosofia acadêmica mais prestigiada, cujos programas de pós-graduação estão na Anpof (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), por exemplo, Olavo de Carvalho, no entanto, foi acolhido por Miguel Reale quando da recusa de um texto enviado para publicação na revista da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência): apresentou então seu trabalho sobre Aristóteles no V Congresso Brasileiro de Filosofia, discutiu-o e publicou-o em seus anais. O Congresso foi organizado pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, cujo fundador é justamente Miguel Reale e de que faz parte Ricardo Vélez-Rodriguez, abjeto e felizmente efêmero primeiro Ministro da Educação de Bolsonaro (não que os outros tenham sido melhores). A oposição entre esses dois polos da filosofia no Brasil marca também a trajetória de Olavo de Carvalho, localizando-o entre intelectuais liberais, conservadores e sem poder institucional – pelo menos até outubro de 2018. A área que Olavo de Carvalho pretende ocupar na filosofia adquire sentido a partir dessa dinâmica das disputas da filosofia no Brasil.

Às frequentes acusações, por parte dos filósofos acadêmicos, de que seria um autodidata pouco rigoroso, sem conhecimento técnico da filosofia, Olavo de Carvalho respondeu, de maneira bastante eficaz, com um “pacto filosófico” com seus alunos e admiradores. Estou aqui me utilizando livremente das excelentes análises de Fernando Antonio Pinheiro Filho sobre Paulo Coelho (O rei do outro polo: Paulo Coelho na literatura brasileira, publicado em Cultura e sociedade: Brasil e Argentina, Edusp, 2014).

No caso de Olavo, esse pacto consiste, de início, na identificação de um inimigo: justamente o filósofo acadêmico comunista, que estaria flanando entre plantações de maconha e orgias, nunca falando por si mesmo, desresponsabilizando-se, sempre defendendo suas teses em nome de causas coletivas. O que Olavo de Carvalho promete aos seus alunos e leitores é um acesso direto à filosofia, pelo qual seria possível a cada pessoa, em seu íntimo, encontrar a verdade. Contra o hermetismo e a empáfia dos acadêmicos, e sem morrer na praia infinita e pedregosa da história da filosofia, estaria o conhecimento autêntico e espiritual, descompromissado de falsos universalismos. Pagando o curso e comprando seus livros, estaria ali a verdadeira filosofia.

Mas ali, onde? Ocorre que esse acesso direto à filosofia em ato coincide exatamente com a pessoa do Olavo de Carvalho. Esse ponto é importante, porque revela um aspecto de seu autoritarismo nem sempre levado em conta. Como já foi muitas vezes apontado, suas posições políticas e valores são abertamente conservadores e autoritários: a misoginia; a lgbtfobia; o racismo; a aversão a direitos sociais garantidos pelo Estado e expressos na Constituição de 1988; e, ainda, o horror à expansão desses direitos ocorrida nos governos Lula e Dilma: em resumo, trata-se do representante e, talvez, do principal promotor da assim chamada nova direita brasileira, esse amálgama de ideias econômicas ultraliberais e costumes conservadores, segundo análise de Camila Rocha em Menos Marx, mais Mises: O liberalismo e a nova direita no Brasil, (Todavia, 2021).

Além disso, eu dizia, há um autoritarismo suplementar em Olavo de Carvalho: a maneira como compreende e exerce a filosofia faz depender a própria ideia de verdade de si mesmo, Olavo de Carvalho. Aqui estamos no modelo daquilo que Eliane Brun chama de “autoverdade”: o ato de dizer importa mais do que o conteúdo, a verdade consiste no poder de quem a profere (“Bolsonaro e a autoverdade”, El País Brasil, 16/07/2018). E podemos ainda avançar: não apenas a verdade, mas a própria realidade dependeria de Olavo de Carvalho para desvelar-se. Com as tramoias dos comunistas, a maçonaria e a reprogramação neurolinguística, Olavo de Carvalho busca instaurar uma realidade paranoica para ser o único capaz de retirar dela os “homens de bem” – que são, evidentemente, os olavistas. Aos inimigos, já vimos, resta eliminá-los.

O sistema de crenças Olavo de Carvalho gerou e gera sofrimento tanto pelas suas ideias tornadas política nas mãos da gestão Bolsonaro do horror, culminando em violência, miséria e mortes, quanto por ser um modo de sentir e pensar amedrontado, seja pelos inimigos, seja pelo próprio mestre – e são muitos os relatos aterrorizados de ex-discípulos. Tendo ele morrido, isso não muda exatamente, porque sua maneira de pensar, expressa em livros e vídeos, continuará a operar nessa lógica. Com Olavo de Carvalho não há, como mais uma vez diz João Cezar de Castro Rocha, o “direito à diferença” e, acrescento eu, o que deveria ser o mais próprio da liberdade proporcionada pela filosofia: a alegria da diferença.

Júlio Canhada é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Autor de O Discurso e a história: a filosofia no Brasil no século XIX, Edições Loyola, 2020.


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