A incrível odisseia do PL 2630

A incrível odisseia do PL 2630
(Foto: Lula Marques/AB)

 

Vocês certamente devem ter acompanhado as polêmicas ao redor do Projeto de Lei 2630, conhecido com o PL das Fake News, principalmente nos dias que precederam a prometida, mas não cumprida, votação de seu mérito. O que nem todos conseguiram entender foi por que tanta coisa e tanta gente que nada tinha a ver com notícias falsas apareceu em cena, já que, segundo a denominação corrente, era de fake news que se tratava.

De fato, a odisseia desse projeto é algo digno de atenção.

Há dois anos, começou com um projeto para controlar a fabricação e a propagação de falsas notícias de cunho mentiroso ou difamatório, proposto inclusive pelo senador Alessandro Vieira, membro titular daquela CPMI das fake news, que funcionou em 2019 e 2020. Depois, foi agregando pautas e temas até se transformar, afinal, em um projeto de legislação não apenas sobre difamação e mentira digitais, mas na proposta de uma Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.

Em dois anos, praticamente tudo mudou: o foco saiu das fake news, cuja propagação por grupos políticos para fins ideológicos e eleitorais se queria controlar ou evitar, e passou para as chamadas empresas de plataformas, o funcionamento de seu modelo de negócio e os serviços de comunicação digital que elas prestam. Dito de outra forma, era uma lei para conter os gabinetes de ódio e se tornou uma lei para controlar o que podem e devem fazer empresas de serviços digitais diante das publicações que são distribuídas em suas plataformas. Esse controle se dá imputando-lhes responsabilidades acerca dos conteúdos de publicações e dos comportamentos de seus usuários online, além de lhes impor outras obrigações.

Uma lei criada durante duas ondas sucessivas e devastadoras de fake news (eleições e pandemia) cuidava de garantir que a democracia sobrevivesse à infodemia de mentiras e falsificações com intenções políticas e ideológicas. Mas a lei foi agregando outras urgências, aflições e angústias – e gerando outras da mesma natureza.

O trauma do 8 de janeiro – insuflado, planejado e mobilizado pela infraestrutura das comunicações digitais – gerou a certeza de que, no ambiente online, se fazia muito mais do que fake news para tentar destruir a democracia. O trauma de abril, ou seja, as tentativas nacionais de réplica dos massacres norte-americanos em ambientes escolares, representou mais uma onda de aflições a dar forma à ideia de que “alguma coisa precisa ser feita a respeito da vida digital”.

Principalmente quando o público tomou conhecimento de que se tratavam de condutas planejadas em comunidades online, em que meninos se radicalizam, dão vazão ao seu ódio e gozam do reconhecimento derivado disso, sobretudo por meio da glorificação dos assassinatos perpetrados.

Não eram apenas mais fake news; não mais o conteúdo e o comportamento antidemocráticos apenas, mas nocivos à vida pública e perigosos para a sociedade. Os alvos não eram mais apenas os gabinetes de ódio, mas  os sediciosos, terroristas e radicalizados antissociais protegidos pelas plataformas (ao proteger o seu modelo de negócio) por camadas de anonimato, criptografia e de resistência a entregar informações à justiça ou a cooperar com as autoridades na remoção de conteúdos.

Por fim, não menos importante, os alvos se tornam as próprias empresas de plataformas, que configuraram historicamente os seus serviços digitais para que fossem um espaço de comunicação protegido dos propósitos de censura e vigilância dos governos, e que, portanto, resistem a demandas que vão justamente em sentido oposto, solicitando censura (sorry, “remoção”) de conteúdo perigoso e maligno e entrega de dados de criminosos e sediciosos para a devida responsabilização penal.

E uma vez que se trata de uma lei sobre obrigações impostas às plataformas, que tal acrescentar algumas demandas relacionadas ao funcionamento de seu negócio e, ao mesmo tempo, agregar algum reforço ao lobby governamental e do terceiro setor contra as grandes empresas de tecnologia?

O acréscimo das obrigações relacionadas à remuneração do jornalismo pelas plataformas, provavelmente essencial para a sobrevivência futura das empresas de mídia, mas que talvez pudesse estar em um outro PL, tinha esse propósito. Sem esse acréscimo, provavelmente grupos de mídia como a Globo e os grandes jornais brasileiros não teriam se engajado na advocacia e no lobby em favor do projeto.

Por fim, de última hora, soma-se a tudo isso a demanda dos realizadores dos campos artístico e cultural de pagamento de direitos autorais. Pelas plataformas, claro. E mais um grupo de lobby e advocacia de interesses se agrega aos grupos de pressão.

Fake news continuam no projeto, mas além do nome com que continuou a ser chamado, ele não tem mais o mesmo alcance. Tangido pelas aflições do 8 de janeiro e dos massacres nas escolas, Arthur Lira topa se livrar do problema, votar o regime de urgência do projeto e articula para isso. Em troca, entretanto, exige e obtém, numa bandeja de prata, o coração do combate às fake news, isto é, a possibilidade de o braço da lei alcançar os maiores falsários de notícias, os maiores traficantes de fake news e, ao mesmo tempo, os maiores beneficiários de sua propagação, que se assentam ao seu lado no Congresso nacional. Senadores e deputados ganharam no PL um salvo-conduto para continuar a farra das fake news.

E mesmo com tamanha concessão, esse projeto – que é sobre muita coisa, mas não para vetar fake news – não obteve suficiente apoio para ser votado com chances de vitória, e foi retirado de pauta no último momento. Mas isso é assunto para outro dia.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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