Obrigado, Chico

Obrigado, Chico
O compositor, músico e escritor Chico Buarque (Foto: Divulgação)

 

Não sei vocês, mas em mim, ao menos, o resultado fisiológico de qualquer ataque ao Chico Buarque é o aumento severo da vontade de ouvir Chico Buarque, que, de resto, já é grande e diária. Felizmente, ouvir Chico Buarque é fácil, a todo momento, porque minha cabeça é quase uma jukebox – ou coisa digital que o valha – de canções dele: ouço um nome que ele cantou, começa a tocar a música na cabeça; leio uma palavra que ele tomou para si, para nós – escafandrista, por exemplo – lá vai rolando o disco no meio da testa. E não é que tenha as letras na cabeça: tenho as gravações completas de algumas canções, com seus arranjos preciosos ou, melhor ainda, com os fenomenais deslizes das gravações ao vivo (e quando Chico erra e ri, jesus!, não há arranjo ou ouvido que não se dobre feliz a seu erro).

No entanto, quando Chico é cercado na rua e xingado, quando algum politicozinho decide desqualificar o filho da Dona Maria Amélia, quando um presidente – veja só, um presidente – quer fazer birra com inveja do Chico (fique tranquilo, rapaz, que se há alguém invejável é justamente esse garoto senhor de discos, livros, gestos, olhos, sorrisos, que nem bem sabemos de que mundo vem), quando alguém tenta dizer que ele não canta tão bem, não é lá um grande romancista, se diminui ao falar de política, foi melhor nesta ou naquela fase… ai meu deus, já sinto requebrar o quadril tomado por “Mambembe” e vou me afastando da vontade – não de defender Chico Buarque, que isso é coisa muito fácil, mas de atacar quem o ataca – e sigo sambando por dentro, parado, distante, meio que me guardando pra quando o Carnaval chegar.

É grave, eu sei, meu caso: vejo-ouço Chico Buarque por todos os lados. Na rua, claro, mas também no fórum, no hospital, no cemitério. Na semana passada, li com emoção textos de amigos aqui sobre o Dia de São Francisco, mas nos meus labirintos algo sugeria que era uma espécie de Dia de Som do Chico, quase como todo dia para mim e tantos amigos, porque parece que tudo que a gente precisa ouvir, inclusive para saciar uma repentina carência de deuses, já está em alguma faixa dos discos desse Francisco carioca. É assim desde sempre, nos discos do Chico, esse contato com um universo que nunca diminui, nunca é previsível, nunca conhecemos por inteiro.

Deve ser por isso que não demorou para que o gigante Sérgio virasse o “pai do Chico” ou que tem dias em que acordo acreditando que o nome do santo – e que Santo! – é homenagem ao sambista, não o contrário. Sei que é exagero, mas quem me ensinou a exagerar foi justamente esse cara que disse que o amor pode esperar em silêncio, num fundo de armário, na posta-restante, milênios, milênios no ar: “Não se afobe, não, que nada é pra já/ amores serão sempre amáveis/ futuros amantes, quiçá/ se amarão sem saber/ com o amor que eu um dia/ deixei pra você”. Ah, Chico, pra que isso?

Se bem me lembro, Chico entrou na minha vida no início dos anos 1990, por aí, quando eu tentava sair da adolescência, e é absolutamente assustador constatar que, até ali, ele já tinha feito discos como os monumentais de 1966 (com “A banda” e “Pedro pedreiro”!), 1967 (com “Quem te viu, que te vê”!), 1967 (que começa com “Ela desatinou”!) e logo depois “Construção” (1971), “Quando o Carnaval Chegar” (1972), “Sinal Fechado” (1974), “Meus Caros Amigos” (1976), “Os Saltimbancos” (1977), “Vida” (1980), “Almanaque” (1981), “Francisco” (1987), “Chico Buarque” (1989), entre tantos, tantos outros, e é ainda mais assustador ter acompanhado os lançamentos que vieram daí em diante, como “Paratodos” (1993), “Uma palavra” (1995), “As cidades” (1995), “Carioca” (2006), “Chico” (2011) e o recente “Caravanas” (2017), além dos livros e de tudo o mais que ele fez nesse período.

Ser contemporâneo de Chico Buarque é um luxo múltiplo. (Aliás, uma das grandes alegrias da minha carreira artística foi participar da gravação do CD e do DVD ao vivo de “Caravanas” em São Paulo: estava ali, com Marli, Luzia, Paula e Sandro, tomando uma cerveja e fingindo que era apenas uma parte do público, mas os mais atentos já repararam que minha voz se destaca no coro formado pelos fãs em torno daquela voz para, de alguma maneira, protegê-la. Acho que era isso: todos ali sabíamos que aquela voz tinha que ser guardada e que a melhor forma de guardá-la é somar-se a ela e fazer soar mais alto o que ela canta. Bem por isso, quando ele se aproximou do público, ali na beira do palco, meu coração se dividia entre a apreensão de pai – esse menino vai cair daí – e a certeza de que era para mim que ele olhava. Juro. Foi em 14 de abril do ano passado: podem conferir e eu tenho ainda o ingresso.)

Pensando bem, Chico não é nossa religião – e ele nem gostaria de ser. É o país em que gostaríamos de morar, o país que devíamos criar, nossa casa, nosso mapa. Isso explica, talvez, o fato de que toda vez que o avião se aproxima do Rio começa a tocar na minha cabeça “Rio de ladeiras/ Civilização encruzilhada/ Cada ribanceira é uma nação// À sua maneira/ Com ladrão/ Lavadeiras, honra, tradição/ Fronteiras, munição pesada…” e isso não cessa até bater os pés novamente no chão de São Paulo, quando outra canção dele sorrateiramente se impõe e a vida segue para outra viagem com Chico

De uns tempos pra cá, quando começamos a cair e cair e cair, não tenho dúvida de que saber, a cada dia, que Chico caía ao nosso lado ajudou muita gente a improvisar algum voo no meio da queda. Que assim seja. Até as redes sociais, dando notícias de Chico Buarque a qualquer hora, num tempo em que tudo se apequena, deixam Chico ainda maior. Esse Chico namorando, lutando contra o golpe, no velório de Marielle Franco, pedindo voto para a Haddad, visitando Lula em Curitiba, que consegue ser tão preciso e generoso fora quanto dentro dos estúdios, em cima dos palcos ou longe deles, a gente talvez não consiga nunca medir. E Chico é mesmo desmedido, colosso não apenas de “engenho e arte”, como diria seu parceiro Camões, mas porque sempre teve a coragem de apontar o rumo a seguir. E seguir conosco. Obrigado, Chico.


TARSO DE MELO (1976) é poeta, autor de Rastros (martelo casa editorial, 2019).

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