O violão vermelho

O violão vermelho
Manifestação contra a aprovação da PEC dos Gastos Públicos, em Brasília, dezembro de 2016. (Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil)

 

Por Victória Salomão

Já é abril. Quase 3 meses na escola nova e Lucas ainda não se adaptou à rotina.  “Um menino educado e de humor triste para alguém com 7 anos de idade. Pouco rendimento e dificuldade de aprendizagem”, veio escrito no primeiro bilhete do professor. Aprender a ler era um sonho, agora sente dor de cabeça após o almoço e passa o dia agarrado às lembranças da creche, da prima Júlia que era sua colega, da bolacha maria do refeitório antigo e da “tia” Lú.

Às vezes a nostalgia lhe foge e desperta com a gargalhada do vizinho de classe e começa a calcular quantos ali já respondem as vogais de cor. Sente dor de barriga de vergonha, as bochechas morenas rubram humilhadas e só lhe resta a compreensão das silenciosas últimas folhas do caderno. 

Ali Lucas encontra abrigo da tempestade que cai sobre sua cabeça. Lembra de casa, desenha com o lápis verde a almofada que a avó costurou. Replica em preto os cabelos da mãe e, com detalhes, apresenta seu ídolo: um homem com corpo palito, mãos desproporcionais e capa de super-herói sobre um palco com fachos de luz pintados de azul-celeste. Em cima da folha, garranchos quase ilegíveis dizem “MEO PAI”. A reclusão do aluno mais uma vez chama atenção do professor.

– Lucas? “Meu” é com “u”.

– Eu não sei cantar essa música, por isso estou desenhando. Desculpa, tio.

É forçado a fechar o caderno e acompanhar a atividade de alfabetização. Finge que canta, mas na verdade disfarça e olha para baixo. Vigia através da gola do moletom cinza com azul da rede pública do Rio de Janeiro  “a camiseta do Ben10 para festas”. A mãe havia lhe jurado para que saísse da escola impecável, já que a iam direto para a o chá de bebê da vizinha. 18h10min e chega o carro branco da família.  A mão desce e busca o filho pela mão. Eles entram e o pai arranca. 

– E aí, Lucas. Copiou tudo do quadro hoje? – diz o avô do Lucas no lado  esquerdo do neto, ignorado. 

– Pai, desenhei você com violão de novo! 

– Ah, é? Você me mostra quando a gente chegar lá? Eu tô levando a viola, tá aí nos pés de seu avô.

O menino agarra o violão e vê que errou mais cedo. Ele é mais amarelo que vermelho. De cabeça baixa, com os olhos fixos para os dedinhos da mão esquerda dedilhando silenciosamente as cordas, estremece com um clarão que se abre contra o carro. Um barulho grave e estridente, como da festa junina da creche cuidada pelo pai, que no banco da frente agora lhe tateia os joelhos.  

Levanta a cabeça com pavor, para entender o que se passa. Vê a face da mãe desfigurada em choro, o avô agachado e sente a mão do pai, outrora tão conhecida e banal, pesar-lhe no colo como a madeira inanimada do instrumento de cordas. Lucas berra e todos respondem, menos o pai, agora um corpo morto e mais um número nas estatísticas de vítimas mortas pela Polícia Militar.  “Mãe, acorda o pai”, soluça. 

*Conto baseado na morte de Evaldo dos Santos Rosa, pelo Exército Brasileiro em 7 de abril de 2019. Mais de 80 tiros foram disparados contra o carro da família na cidade do Rio de Janeiro.

Victória Salomão, de Pelotas (RS), tem 25 anos e é jornalista e escritora.

 

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