O poder também dança

O poder também dança
Com a presença de Marcon e Trump, banda militar tocou hits do Daft Punk em parada para comemorar a queda da Bastilha (Foto: Euronews)

 

É uma cena que deveria ser integrada aos livros de ciências políticas. Ela poderia estar no capítulo sobre “como o poder espolia nosso gozo” ou talvez na subseção que nos explica como não há mais lugar para falar: “se não posso dançar, essa não é minha revolução”.

Estamos em um 14 de julho da presidência do senhor Emmanuel Macron, com seus ternos slims e seu rosto jovial. Tudo isso ocorreu em 2017, e está em imagens no Youtube para quem quiser ver. Há uma parada militar para a comemoração da queda da Bastilha na qual Macron está ao lado de seu convidado, o senhor Donald Trump. Ao lado dos dois, generais em uniforme, mulheres de generais em uniforme e alguns funcionários públicos que devem compor o cenário das  “pessoas comuns”.

E eis que a banda militar toca, como sempre tocou. Até que algo ocorre, a banda começa uma coreografia improvável e uma música estranhamente familiar aparece em arranjos de metais. A câmara mostra os rostos dos presidentes, esperando a reação do momento da descoberta. Sim, é verdade, a banda militar está a tocar Daft Punk. Ela toca aquelas músicas que dançávamos nos anos noventa, quando tínhamos vinte anos e procurávamos alguma margem no ritmo da reprodução marcial da sociedade apostando em raves ilegais escondidas no mato.

Macron sorri, ele reconheceu as músicas. Trump, com sua sisudez costumeira, não entende nada. Até que começa a mostrar a feição de quem se pergunta por que diabos os músicos dos seus cassinos em Las Vegas não tinham pensado nisso antes. Ao sorriso do chefe, está dada a autorização para todos os generais, assassinos de guerras coloniais, torturadores e especialistas em brutalização mostrarem sua humanidade e marcarem o ritmo contagiante com os pés. A ideia de chamar funcionários públicos demonstra-se rapidamente acertada. No estilo perfeitamente codificado do “quase sem querer”, a câmara acha uma funcionária negra que (script colonial clássico oblige) deixa-se contagiar mais do que os outros e parece não querer mais ficar na cadeira.

Como disse, é uma cena que deveria estar nos livros de ciência política. Ela explica, melhor do que qualquer tratado, como o poder efetivamente funciona. Ele funciona nos fazendo dançar. Aquela história do poder que reprime, que nos impõe a norma com a dureza do fronte cerzido, isso aí terá que se acomodar com uma imagem muito mais eficaz: a imagem do poder que dança as nossas músicas, que diz “mas, afinal, vejam vocês, entre uma rave e um desfile militar oficial, não havia tanta distância assim. Não acredito que vocês não tinham percebido?”.

Entre o gozo e a norma, quem, a não ser deus, veria agora a diferença? Não se trata apenas de dar certo toque de jovialidade ao poder ou de aproximar as margens (afinal, a banda se chamava Daft Punk) e o centro. Trata-se de mostrar onde o poder realmente está. Ele está na pulsação das nossas danças, na gestão dos nossos sorrisos, na produção das nossas fantasias. Ele nos diverte e, como já disse antes, a diversão é o eixo maior das estratégias de nossa servidão.

E então chegou um momento em que até mesmo o vocabulário das lutas políticas havia sido transposto ao mundo dos quadrinhos, dos super- heróis da Marvel. Momento em que não havia representação oficial do poder sem Lady Gaga emocionada pela volta da “democracia normal” ou os sertanejos milionários acalentando sonhos de fazendeiros escravistas com lágrimas de amores terminados. E, divertindo-nos, fomos massacrados, porque essa sempre foi a verdadeira função da indústria cultural: nos massacrar enquanto sorríamos. Porque até mesmo a força de desligamento de nossas danças nos foram roubadas. Bien joué, Macron. Há de se reconhecer que ao menos os arranjos de metal da banda militar não eram de todo ruim.

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP


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