O papa da fé

O papa da fé
(Foto: Alessandra Benedetti/Corbis)

 

Eleito papa aos 78 anos, Joseph Ratzinger priorizou a renovação proposta pelo Concílio Vaticano II, mas sem ruptura com o passado, revigorando a continuidade com o acolhimento da Palavra de Deus, na fé, em busca de manifestações e vivências renovadas, correspondentes às condições culturais do mundo atual. Foi o que declarou oficialmente nos votos de Natal à Cúria Romana, em 2005, antecipando a linha que seguiria em seu pontificado. Suas encíclicas o confirmam: tratam do amor, da esperança e da autenticidade na prática do amor, versando sempre sobre temas do relacionamento pessoal com Deus, em cuja base está a fé entendida como “adesão pessoal a Deus” e manifestada no acolhimento de sua Palavra, em comunhão no mesmo Espírito.

Assim, a fé, longe de ser um aspecto particular de seu pensamento, é o tema central de sua vida. Bento XVI passará à História como “o papa da fé”; da fé como raiz da vida de união com Deus e de oração, em diálogo com a razão e com a cultura. Por isso, tendo consciência, como disse, de haver entrado na última etapa de sua vida, fez questão de proclamar um Ano da Fé, de outubro de 2012 a novembro de 2013, dispondo que a Igreja medite, aprofunde e manifeste a fé enraizada no fundo do coração de todos os crentes.

Tomou essa decisão porque, no exercício de sua responsabilidade, constatou que “muitas vezes os cristãos sentem maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé” (Carta Porta Fidei, 2); preocupam-se mais com o impacto político de sua atuação do que com as razões cristãs de agir. Testemunha de Jesus, a Igreja não se pode sustentar no ambiente cultural laicizado em que vivemos sem que os cristãos deem testemunho das razões de sua fé.

O ato subjetivo de crer

A forma como proclamou o Ano da Fé, sublinhando a importância do ato subjetivo de crer, confirma sua visão de teólogo, profundamente comprometido com a vida de fé. Com efeito, a Igreja romana, opondo-se por muito tempo ao pensamento de Lutero (1483-1546) – considerado “subjetivista” porque minimizava os dados objetivos e as estruturas eclesiásticas –, sublinhou a objetividade da verdade na qual se crê e valorizou ao máximo as expressões e práticas desenvolvidas na Idade Média. O ato subjetivo ficava relegado a segundo plano, destacando-se antes o conteúdo objetivo da confissão de fé. Por oposição a esse objetivismo, a ênfase na experiência subjetiva começou a fazer escola desde o início do século 19. Passaram a vigorar formas cada vez mais radicais, ameaçando a verdade católica “objetiva”. A Igreja tomou posições duras no sentido oposto, condenando o que chamou de modernismo. Tornou-se mais claro para os bons teólogos que era preciso repensar a relação entre as expressões objetivas da fé, mesmo quando colhidas diretamente na Escritura, e o ato subjetivo de crer. Na Alemanha, para católicos e luteranos, chegava o momento de procurar uma superação tanto do subjetivismo modernista ou liberal como do objetivismo dogmático ou estrutural. Se Karl Barth (1886-1968) e Rudolf Bultmann (1884-1976), do lado protestante, foram grandes iniciadores dessa superação, Ratzinger, do lado católico, não foi dos menores seguidores. Sua contribuição é hoje universalmente reconhecida, tanto na Igreja como nos ambientes universitários. Além disso, com seus livros Jesus de Nazaré e A infância de Jesus, não deixou de se erguer no campo mais específico de Bultmann.

A questão fundamental para um teólogo católico é salvaguardar a transcendência da verdade, objetivamente refletida em suas expressões ao longo da tradição cristã, sem cair no relativismo, nem lógico nem cultural, encontrando, ao mesmo tempo, o caminho de valorizar o ato de crer, garantia da autenticidade da fé professada. Não basta formular corretamente o Jesus em quem acreditamos; é indispensável, de fato, para manter a catolicidade da fé, crer em Jesus filho de Deus e salvador. Historicamente, uma das grandes oportunidades de Ratzinger demonstrar a consistência de seu pensamento nessa matéria foi sua presença à frente da Congregação para a Doutrina da Fé por ocasião do diálogo católico-luterano que resultou na Declaração Conjunta das Igrejas Luterana e Católica sobre a Justificação, em 1999. Documento maior que tanto pelo conteúdo quanto pelo método empregado evidencia uma nova forma de conceber, na análise da fé, a relação entre o ato de crer e o conteúdo da fé, inseparáveis, mas distintos.

Ratzinger, como papa, sempre se referiu a essa distinção, verdadeira chave hermenêutica indispensável à compreensão de seus escritos e analisada de maneira formal por ele na Carta Apostólica Porta Fidei (“A porta da fé”), por meio da qual proclamou o Ano da Fé e que passará à história como legado ecumênico do papa teólogo. Nela, Bento XVI apresenta não apenas uma síntese da doutrina da fé, mas também uma série de consequências sobre a repercussão que é chamada a ter no ensino da Igreja, na transmissão da fé às novas gerações e no fortalecimento da vida de todos os cristãos. Ao definir seu objetivo, Bento XVI manifesta a visão da fé que o inspira: “Queria delinear um percurso que ajude a compreender de maneira mais profunda os conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o ato pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus. De fato, existe uma unidade profunda entre o ato com que se crê e os conteúdos a que damos o nosso assentimento. […] O conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvador revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque o garante da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o seu mistério de amor” (Porta Fidei, 10).

A fé como ato de liberdade

Assim entendida, a fé ultrapassa os quadros estreitos de qualquer expressão da verdade; ela se apoia diretamente em Deus, é experiência de Deus, independentemente dos inevitáveis limites que afetam todo conhecimento da divindade nas diversas religiões. As religiões são, antes, expressões da experiência interior em que é dado perceber a condição de criatura em face da Realidade Transcendente, oferecendo um sentido à vida. Realidade a que, na nossa tradição cultural, denominamos Deus. Essa experiência interior é acolhida na liberdade, pelo ato de crer, mas seu conteúdo se insere no contexto cultural em que os crentes são chamados a existir. Compete-lhes alimentar a liberdade de acolhimento do sentido que lhes é oferecido, e, graças ao exame crítico da razão, representá-lo de forma a que possa ser abraçado como expressão da verdade e do bem a que todos estão ordenados.

Essa concepção de fé aberta, como fonte de sentido a ser proclamada a todos os humanos, é assumida por Bento XVI: “Por outro lado, não podemos esquecer que, no nosso contexto cultural, há muitas pessoas que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera do sentido último e da verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo. Esta busca é um verdadeiro ‘preâmbulo’ da fé, porque move as pessoas pela estrada que conduz ao mistério de Deus. De fato, a própria razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência “daquilo que vale e permanece sempre”. Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito indelevelmente no coração humano, para caminhar ao encontro d’Aquele que não teríamos procurado se Ele mesmo não tivesse já vindo ao nosso encontro. É precisamente a este encontro que nos convida e abre plenamente a fé” (Porta Fidei, 10).

Essa forma de encarar a fé leva a uma revisão profunda do vocabulário cultural e religioso, para o que, porém, muito poucos dentre nós, inclusive teólogos, parecem preparados. No entanto, não pode passar despercebida a evolução da Igreja Católica no tocante ao posicionamento da fé em face da ciência, da cultura, das outras tradições religiosas e do mundo em geral. A prioridade reconhecida ao ato de crer confere maior importância à autenticidade pessoal e relativiza os limites com que a vamos progressivamente exprimindo, na diversidade dos tempos e das culturas. Considerar, como sugere Bento XVI, a busca pessoal um “preâmbulo” da fé é integrar a busca livre de sentido para a vida no ato de crer e abrir assim o acesso a Deus a todos os que agem autenticamente como humanos.

A fé dos que não creem

Dessa forma, entende-se o que o Concílio Vaticano II exprimiu numa de suas passagens mais significativas. Ao afirmar que o cristão, associado ao mistério pascal e configurando-se a Cristo na morte, caminha animado pela esperança da ressurreição, acrescenta: “Isto não vale somente para os fieis, mas para todos os homens de boa vontade, em cujos corações atua a graça de maneira invisível. Como Cristo morreu para todos, todos são chamados a participar da mesma vida divina. Deve-se, pois, acreditar que o Espírito Santo oferece absolutamente a todos os seres humanos a possibilidade de se associar ao mistério pascal, de maneira conhecida somente por Deus” (Constituição Pastoral Gaudium et Spes, nº 22).

A doutrina da fé de Bento XVI possibilita entender esse mistério em profundidade: crer no ser humano é crer em Deus, em virtude da relação pessoal que tem Jesus com cada ser humano. Proclama-se, no âmbito da fé, o que o próprio Jesus proclamou no âmbito do amor: “o que fizestes a um desses meus irmãos, ainda que dos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25:40).

Francisco Catão foi teólogo, doutor pela Universidade de Estrasburgo e ex-secretário de Yves Congar (perito no Concílio Vaticano II).


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