O palco como abismo da incongruência

O palco como abismo da incongruência

Edwin Luisi e Luis Melo em cena como Hirst e Spooner (Foto: Leekyung Kim)

Welington Andrade

“Opondo-se à constante degradação da linguagem pelos que a utilizam descuidadamente,
um amante das palavras não tratará o vidro colorido como se fosse transparente.”

Walter Pater, Appreciations.

É, no mínimo, curiosa a situação do espectador diante da montagem de Terra de ninguém, em cartaz até o próximo dia 26 de outubro no Teatro do Sesc Vila Mariana. O texto é de autoria de Harold Pinter, um dos grandes dramaturgos ingleses do século XX, ganhador em 2005 do prêmio Nobel de literatura; a direção está a cargo de um diretor acostumado a transformar sua irrefreável ousadia em rigorosa invenção, responsável por oferecer ao público brasileiro até agora um repertório de altíssimo nível intelectual e artístico: Roberto Alvim; o elenco é formado por quatro intérpretes de trajetórias muito diferentes – Edwin Luisi, Luis Melo, Caco Ciocler e Pedro Henrique Moutinho –, mas irmanados por uma condição inescapável ao mundo do teatro: o talento. Entretanto, a despeito de tais empenhos, esse espectador, ainda que se sinta atraído constantemente para o vórtice do que ocorre no palco, parece não entender muito bem o significado daquele pequeno conjunto de situações fugidias com o qual ele entrou em contato a partir do momento em que soou o terceiro sinal no teatro. O que se pode oferecer, então, ao sujeito atônito e desorientado submetido à teatralidade fricativa de Harold Pinter? Poucas zonas de conforto estabelecidas a partir do previsível mundo da informação, a bem da verdade da vida real; mas alguns bons exercícios de especulação poética, linguística e teatral, para ser fiel à realidade da arte, afinal.

Influenciado desde muito jovem por James Joyce e Franz Kafka, Pinter integrou a geração inglesa dos chamados “jovens coléricos” (angry young men), da qual fizeram parte também, nos anos de 1950, entre outros, o John Osborne de Look back in anger, o Arnold Wesker de A cozinha e o Edward Bond de Saved. A preocupação do grupo parecia apontar para a necessidade da criação de um novo drama que oscilasse entre uma dramaturgia politicamente engajada e um teatro voltado à especulação metafísica. No entanto, aos poucos o jovem Pinter foi se distanciando dessa polarização, a fim de assentar sua obra sobre outro par dicotômico que lhe parecia mais expressivo: a congruência que há entre o trágico e o cômico. Em uma entrevista radiofônica concedida em 1960, reproduzida por Martin Esslin em O teatro do absurdo, o autor, que estreara três anos antes com O quarto, declarava: “Tudo é engraçado, a seriedade absoluta é engraçada; a própria tragédia é engraçada”, para completar em seguida que suas peças procuravam apreender “a realidade reconhecível do absurdo daquilo que fazemos, do modo com que nos comportamos e falamos”.

Mais de uma década após o êxito de peças como A festa de aniversário (1958), O zelador (1960) e Volta ao lar (1964), Harold Pinter concebeu um dos grandes sucessos da temporada inglesa de 1975: Terra de ninguém (No man’s land), na qual apresenta quatro personagens às voltas com a exasperante tarefa de existir – cênica, poética e metafisicamente. A peça conta a história de um famoso escritor, Hirst, que convida um velho intelectual decadente, Spooner, para tomar um drink em sua casa. Quando ambos parecem ter calibrado muito bem suas expectativas mútuas (Hirst deseja companhia, Spooner, um abrigo), surgem dois serviçais, Foster e Briggs, cuja presença desequilibra a relação entre eles. Após sucessivos turnos verbais entre os quatro – apresentados monológica ou dialogicamente –, a peça termina em torno de uma aguda ambivalência: tanto Spooner como Hirst sentem-se expatriados no palco, tendo sido expulsos do paraíso rumo a uma terra de ninguém que “não se move… não muda… permanece… para sempre… um silêncio… gelado”.

Se o texto, por si só, exibe uma força poética que repousa na mais íntima camada da aluvião que se forma a partir do contínuo processo de erosão linguística vivido pelas personagens (depósito de muitos cascalhos, mas de algum ouro também), a montagem dirigida por Roberto Alvim potencializa tal vigor lírico-poético, instaurando no palco o halo de uma fascinante teatralidade. O diretor sabe muito bem conduzir o espectador para dentro de uma floresta de signos tão belos quanto desafiadores. Primeiramente, o espaço cênico delimitado pela cenografia concebida por ele mesmo é de uma beleza ímpar: tanto pela ciclópica parede composta por incontáveis garrafas de bebida (a sugerir, a um só tempo, lubricidade, descontrole e embriaguez), que marca o primeiro ato; quanto pelo asséptico fundo branco que surge no segundo ato, encapsulando os personagens em uma espécie de sala diáfana, mas tumular. Em segundo lugar, pela manipulação expressiva dos elementos de cena. A escultura equestre (criada por Ronaldo Dimer), posicionada no primeiro ato à direita da plateia; a máscara de cavalo (concebida por Cris Amorim), que Foster usa em determinado momento para se deslocar em cena; e a projeção fantasmática da figura do animal sobre a parede branca na segunda metade da peça parecem reforçar o aspecto trevoso do mundo ctoniano instaurado pelo palco mergulhado em constante semiescuridão. “Filho da noite e do mistério” o cavalo é para Jean Chevalier, “o portador de morte e de vida”. Para a psicanálise, ele é tanto símbolo do psiquismo inconsciente quanto arquétipo da impetuosidade do desejo. Além dessa penetrante atmosfera visual, Alvim concebe marcações hieráticas, responsáveis por ações de deslocamento e parada dos atores sempre revestidas de instigante plasticidade. E explora ainda o uso de outros elementos sensoriais com o intuito de extrair das palavras de Pinter sua força imprecisa e enigmática. “Uma forma de encarar a fala humana é a de considerá-la como um constante estratagema para cobrir nossa nudez”, declarou o dramaturgo. Merecem ser destacados, nesse sentido, os figurinos de João Pimenta, a trilha sonora original e os efeitos de som de Leonardo Pimentel, a iluminação de Domingos Quintiliano e o visagismo assinado por Alex.

Luis Melo confere a Spooner uma dramaticidade das mais pulsantes (Foto: Leekyung Kim)

Em perfeita consonância com o projeto de direção, os quatro atores conferem à empreitada interpretações de altíssimo nível técnico e emocional. Edwin Luisi compõe seu Hirst com a perniciosa elegância de um lorde inglês, transitando do cinismo automático de um dândi qualquer ao hedonismo corrosivo característico do mais extraordinário deles: Dorian Gray. (Há que se investigar com o devido cuidado as expressivas correspondências, em chave de inversão, entre a linguagem erotizada que Oscar Wilde usa para tratar do prazer estético e a linguagem estetizada empregada por Pinter para escamotear o homoerotismo que serve de baixo contínuo à trama de Terra de ninguém. Cremos que, além desse, parece haver ainda outros pontos de contato entre ambas as obras). Luis Melo confere a Spooner uma dramaticidade das mais pulsantes. O ator coloca sua presença magnética, ampliada pela densidade de sua voz, a serviço de um personagem complexo, cujo centro de gravidade reside no fato de ele ser constantemente ameaçado pelos demais. Caco Ciocler constrói seu Foster no limite de uma rascante histeria, que funciona muitíssimo bem. A rigor, ele e Edwin Luisi são os intérpretes mais convidados à autoexposição, em virtude de esgarçarem, em muitos momentos, suas vozes, suas risadas e seus gestos em direção ao mais arrematado grotesco. Pedro Henrique Moutinho se sai tão bem quanto os demais. Sem ficar acomodado à beleza de seu preparo muscular, o ator investe em uma corporeidade inquietamente coreográfica, lançando-se com igual ímpeto à figuração, seja da submissão, seja da violência.

Se a tônica desta Terra de ninguém é relevar pouco e falar muito, a direção de Roberto Alvim estende, de modo muito particular, a proposta do autor, fazendo da máquina eloquente de Harold Pinter um fértil terreno para a emanação de corpos loquazes, mas de seres indizíveis – fragmentados por cortes de luz, despedaçados por ranhuras de som. Sobre o aspecto da partitura sonora da peça (“… depois da possibilidade da palavra vem a voz de uma música, a música que diz o que eu simplesmente não posso aguentar”, Clarice Lispector), vale destacar o contundente contraste que há entre os estampidos regulares e a sonata para piano, de Schumann, de cuja execução o diretor se vale mais de uma vez. Igual embate agônico se dá na entrada final das personagens nos domínios dessa tão habilmente construída waste land teatral, saudados pelo Concerto para Violino e Orquestra de Brahms.

O dramaturgo, que na juventude foi garçom em um clube para homens, domina como poucos a linguagem do interdito, fescenina quando sai do controle, fascinante quando mergulha no enigmático (vale lembrar que fescenino e fascinante privam de um étimo comum, ligado à simbologia fálica). Fadados a conviver no mesmo espaço, os quatro personagens do belo texto de Harold Pinter exercitam suas existências precárias por meio de uma linguagem insignificante na superfície, plurissignificativa nas profundezas. Há disputa, ameaça e horror entre eles, mas há algum tipo de afeto também, embora não saibamos precisar com que intensidade ele apareça. Para Lacan, amor e linguagem se suscitam mutuamente. Para Pinter, tais elementos se repelem. A energia motriz dos instintos de vida, segundo o dramaturgo, está soterrada por camadas e camadas de sentidos impalpáveis. Como se estivéssemos condenados a ser para sempre afetados por nossa total incapacidade de compreender os afetos por meio dos quais a vida se torna um pouco menos sem sentido.

Terra de ninguém
Onde: Teatro do Sesc Vila Mariana. Rua Pelotas, 141, Vila Mariana
Quando: até 26/10. Sextas e sábados às 21h e domingo às 20h.
Quanto: De R$ 15 a R$ 50.
Info: (11) 5080-3000.

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