O necessário diálogo das memórias da ditadura civil-militar com a população

O necessário diálogo das memórias da ditadura civil-militar com a população
Manifestação no Rio de Janeiro em 1968 contra a ditadura militar (Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã)

 

 

Por Bruno Antonio Barros Santos

As memórias sobre a ditadura civil-militar no país ainda são uma ferida aberta. Na contramão de muitos países da América do Sul – tais como Chile, Argentina e Uruguai –, o Brasil acabou anistiando os crimes cometidos por militares durante o regime que vigorou entre os anos de 1964 a 1985.
Por outro lado, desde a redemocratização, tivemos alguns avanços, tais como: criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), em 1995, criação da Comissão de Anistia, em 2001, e criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2011.

Entretanto, o problema é que não houve um amplo debate nacional com a própria população em torno dessa chaga que tanto infecciona o nosso porvir, ou seja, é sempre um fantasma que continua assombrando nosso frágil pilar democrático, por meio de furiosas dinamites.

Nesse sentido, no Brasil, temos pouquíssimos museus que abordam o que foi a ditadura civil-militar, quem foram seus agentes estatais, quais crimes cometeram, o que eram os Atos Institucionais, como agiam as Forças Armadas e as polícias, qual era o grau de liberdade da população, como atuava a imprensa, quais direitos o povo tinha de exercer, quem financiou o regime militar, como o poder tratava a oposição política, em que medida as pessoas podiam se manifestar, a quem se poderia recorrer caso não se rezasse a cartilha do regime, como estavam as igrejas e a sociedade civil, a escola e as famílias, entre outras inúmeras indagações.

Em suma, não temos muitas memórias construídas e amplamente compartilhadas com a população brasileira desse período de nossa história. Por exemplo: qual o grande museu nacional, largamente conhecido pela população, que resgate essas memórias? Não há.

Lembro que, em 2018, numa viagem que fiz à cidade de Santiago, no Chile, fiquei encantado com o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, um enorme e conhecido museu interativo em homenagem às vítimas da sangrenta ditadura chilena, comandada pelo ditador Augusto Pinochet, entre 1973 a 1990.

É um museu com inúmeras salas que mostram os horrores cometidos pela ditadura chilena, com nomes dos algozes e das vítimas. Nele, não se esconde nada; é algo exposto para constranger mesmo. São memórias de um período sendo recontadas para que as gerações atuais e seguintes não repitam essa experiência traumática. Saí do museu com toneladas de reflexões em minha mente. Minhas inquietações pululavam. Impossível não se incomodar profundamente com o vasto sofrimento daquelas pessoas.

Retirou-se um pedaço da minha alma quando visitei a sala que contava as histórias de mulheres grávidas e de crianças que foram torturadas e executadas pela ditadura. Em particular, chorei copiosamente ao ler uma carta direcionada ao governo chileno, escrita por Marcela Meza Lagos, filha de Gloria Esther Lagos Nilsson (presa e desaparecida, em 1974, com 3 meses de gestação). Marcela escreveu a carta, já adulta, isso porque era uma criança de 8 anos de idade quando a ditadura chilena levou a mãe dela, para nunca mais encontrá-la. Assim, Marcela perdeu a mãe e o seu futuro irmão.

E, até hoje, Marcela luta para poder ter o direito de enterrar sua mãe. O museu apresenta inúmeros casos tristes, carregados de relatos fortes e tocantes. Mas, ao mesmo tempo em que nos traz uma sensação psíquica perturbadora, banha-nos de sensibilidade em relação ao “outro”.

Registre-se, por oportuno, que, na contramão da empatia em relação às dores e aos sofrimentos de milhares de vítimas e de seus familiares, o presidente Jair Bolsonaro não teve qualquer constrangimento público em louvar o sanguinário ditador chileno, Augusto Pinochet, assim como também já elogiou efusivamente o ditador paraguaio, Alfredo Stroessner, cuja ditadura promoveu milhares de torturas, desaparecimentos e execuções. Stroessner, além de ter sido acusado de corrupção e pedofilia, também abrigou nazistas no Paraguai, a exemplo de Josef Mengele, médico nazista conhecido como o “Anjo da Morte”.

No Brasil, na perspectiva do histórico apagão social de memórias não reconstruídas, é que vemos discursos que exaltam a ditadura civil-militar, sem a menor timidez pública em defendê-la. Sendo assim, como é possível um deputado ir à tribuna da Câmara dos Deputados e, na votação do impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, em abril de 2016, fazer uma homenagem a Carlos Aberto Brilhante Ustra, coronel do Exército e famoso torturador e chefe do DOI-Codi?

Esse era o então deputado federal, Jair Bolsonaro que, não satisfeito em somente elogiar Ustra publicamente, debochou da tortura que Dilma sofreu, dizendo que Ustra era o “pavor” dela. Por outro lado, imagine alguém ir a uma tribuna da Câmara dos Deputados para exaltar Adélio Bispo, falando dele, em tom debochado, como o “carrasco” de Bolsonaro? Seria um ato de completa indiferença e insensibilidade em relação à vida alheia. As pessoas podem até ter o direito natural de odiar outrem, mas publicizar isso por causa de vertentes ideológicas diferentes, sobretudo quando esse alguém é fisicamente vítima de algo, revela uma humanidade esgarçadamente perdida. Mas, tal disparate não é nenhuma surpresa para quem apregoa que o erro da ditadura foi torturar, e não matar.

Portanto, é nesse apagão de memórias históricas que, nos últimos dois anos, o negacionismo de Jair Bolsonaro cresce ao negar que houve golpe em 1964; que o general Villas Bôas tem cheque em branco para mandar mensagem intimidatória ameaçando o STF; que Eduardo Bolsonaro afirma bastarem um soldado e um cabo para fechar o STF; que o dia 31 de março de 1964 – dia do golpe civil-militar – é comemorado nos quartéis; que Jair Bolsonaro debocha do desaparecimento de Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, por forças do Estado, na época da ditadura; que Carlos Bolsonaro faz uma ameaça velada, afirmando que “por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá”; que Eduardo Bolsonaro diz poder haver um novo AI-5 caso a esquerda radicalize; que o general Augusto Heleno, em vez de rechaçar de imediato qualquer declaração sobre a possibilidade de um novo AI-5, diz que “tem de estudar como vai fazer, como vai conduzir”.

Ora, todas essas posturas não democráticas vão povoando o imaginário social. E não é só isso. Dentro da disputa de narrativas no campo político, são discursos produzidos para captar o termômetro social, como se fossem balões de ensaio, ou seja, estica-se a corda até o limite, no sentido de testar a receptividade do discurso no meio social.

Ademais, tem-se um discurso de deslegitimação das instituições democráticas, a partir de uma lógica discursiva de autopurificação, na condição autointitulada porta-voz da “verdade”. Portanto, não é à toa a frequente citação da passagem bíblica de João 8:32 no meio bolsonarista: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”. Instrumentaliza-se um livro sagrado para atender a fins políticos, levando à crença de que tudo aquilo que não entra na moldura da “verdade” precisa ser expurgado.

Nesse viés, trata-se de uma linguagem simpática a um modelo ditatorial que sufoque qualquer divergência de pensamento. Propõe-se uma ditadura para chamar de sua, onde a “verdade” fabricada prevalecerá. Sendo assim, quem não aderir a essa “verdade” será considerado “inimigo” e, a partir disso, o caminho estará pavimentado para a anulação desse “inimigo”.

A propósito, no contexto da ditadura civil-militar, no Brasil, o AI-5 (Ato Institucional nº 5), que vigorou de 1968 a 1978, foi isso: uma “verdade” promovida para massacrar qualquer discordância à ditadura. E, com a justificativa de assegurar a continuidade do que os militares chamavam de “obra revolucionária”, no AI-5, o Presidente da República, em resumo, tinha o poder de: a) decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores; b) decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição; c) suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos, pelo prazo de 10 anos, e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais; d) demitir, remover, aposentar ou por em disponibilidade pessoas que trabalhavam no serviço público.

Além disso, o AI-5 expressava que a garantia de habeas corpus estava suspensa, nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, contra a ordem econômica e social e a economia popular. E o pior é que todos os atos praticados, de acordo com o AI-5, estavam excluídos de qualquer apreciação judicial. Dessa maneira, se o texto da legislação já continha tanta perversidade ditatorial, o AI-5, na vida real, intensificou ainda mais a promoção das piores crueldades antidemocráticas: fechamento do Congresso Nacional, prisões arbitrárias, torturas, sequestros, desaparecimentos, mortes, perseguições, censura, repressão, invasão de casas e jornais, suspensão de direitos políticos, cassação de mandatos eletivos, demissão de funcionários públicos etc. Tudo isso promovido em nome do Estado.

Imagine você não ter liberdade de expressão para manifestar livremente seu pensamento. Não poder criticar o governo dentro da sala de aula das próprias universidades. Não poder escutar as músicas ou ler os livros que quiser. Não ter a liberdade de poder escolher seus representantes políticos. Não poder se reunir em movimentos sociais e sindicatos. Não exercer o direito de ter sua liberdade restabelecida se fosse preso por ser considerado um “inimigo”. Não ter como denunciar abusos e violações do Estado, pois não havia órgão independente para investigar e nem liberdade de imprensa.
Imagine não se poder ler o romance A capital, de Eça de Queiroz, por ter sido confundido com o livro O capital, de Karl Marx. Imagine você não poder assistir ao brilhante espetáculo do Ballet Bolshoi, que teve sua transmissão censurada na TV, na ditadura civil-militar brasileira, porque era russo e, automaticamente, “comunista”.

Em relação ao AI-5, curiosamente ressalta-se que o presidente Jair Bolsonaro, quando era deputado, louvou o referido Ato Institucional duas vezes na Câmara dos Deputados (dezembro de 2008 e março de 2010). E, como visto, não havia qualquer dúvida quanto ao notório caráter ditatorial do referido Ato Institucional. Isso porque até o então presidente-ditador, Costa e Silva, em referência ao AI-5, reconhecia que o Brasil vivia uma ditadura.

É preciso, então, resgatar as memórias desses horrores cometidos, ao mesmo tempo em que é necessário relembrar as vítimas invisibilizadas dos crimes praticados pela ditadura civil-militar brasileira. Por outro lado, é muito triste ver, no Brasil, a quantidade de espaços públicos – tais como avenidas, ruas, pontes, escolas etc. – com o nome de ditadores do regime militar. Por ironia da vida, a maior ponte da América Latina é a Ponte Presidente Costa e Silva (nome oficial), no Rio de Janeiro, conhecida popularmente como Ponte Rio-Niterói, com 13,29 km de comprimento total. Ironia, pois ditaduras são grandes construtoras de muros entre as pessoas, e não de pontes. E, para dar um exemplo pessoal nesse quesito, moro em São Luís (MA) e me causa profundo desgosto saber que uma das principais avenidas da minha cidade se chama Marechal Castelo Branco.

Voltando, pois, ao Chile, no Museo de la Memoria y los Derechos Humanos há uma citação enorme na parede e que me tocou bastante: “El Museo es una escuela. El artista aprende a comunicarsé; el público aprende a hacer conexiones”. Daí a importância de termos museus como escolas de resgate de nossas memórias, para que a população possa fazer conexões entre o passado e o presente, a fim de que horrores ditatoriais não se repitam.

Ademais, essa ponte de conexões é importante para que histórias dolorosas e de sofrimentos, como as de Marcelas e Glorias, no Chile, nunca mais aconteçam. E, no Brasil, para que não só tenhamos memória dos casos mais conhecidos de vítimas da ditadura civil-militar brasileira (o jornalista Vladimir Herzog, a estilista Zuzu Angel, o ex-deputado federal Rubens Paiva, os estudantes Edson Luís de Lima Souto e Alexandre Vannucchi Leme), bem como possamos resgatar a memória de inúmeras vítimas anônimas que padeceram nos porões da ditadura e, também, de milhares de pessoas que não só resistiram à ditadura, mas que também lutaram pelo fim do regime militar.

Portanto, marchemos, sempre, em busca da democracia, sem nos calarmos. E não nos esqueçamos, jamais, da corajosa canção Cálice (censurada pela ditadura, e escrita por Chico Buarque e Gilberto Gil), que nos alimenta a alma contra qualquer “cale-se” sanguinário: “Pai, afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue”.

Bruno Antonio Barros Santos, 34, é defensor público do Estado do Maranhão

 

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